terça-feira, fevereiro 20, 2007

Sem certezas



Preparei há minutos um café bem forte, que vai ser uma ajuda inestimável à insónia que tem preenchido as minhas noites, ultimamente, e fui para a marquise, chávena numa mão, cigarro na outra, observar as tonterias dos gatos vadios no quintal da casa desocupada em frente. Há mais de uma semana que não estou contigo e sinto-me só, tão só que gostava de ser um gato vadio e não fazer mais na vida do que caçar e brincar no escuro de um quintal promovido a selva.

Não entendo como é possível que sejam trivialidades banais do dia a dia o motivo último para que estejamos separados, mas compreendo que por detrás destas trivialidades existam factores mais profundos e cortantes, que criam rupturas e cisões onde de outro modo existiria um saudável amor completo de rotinas. Só não me encaixa como é que umas coisas levaram às outras, e agora, por causa de banalidades, tenhamos chegado aqui.

É o que mais falta me faz, as rotinas de estar contigo como sempre estivemos, nestes passados três anos. Por esta hora estava a preparar-me para ir a tua casa, invariavelmente atrasado, e também esta rotina era reconfortante, saber que o meu atraso tinha-te a ti, no fim. Agora tenho todo o tempo do mundo, e não, não estou atrasado para nada, mas também só me restam as idiotices da televisão, observadas a partir da minha cama, ou este computador, esta cadeira que me arrebenta as costas e não diminui em nada a dor de não estar no sofá enroscado em ti. Este cigarro e esta janela debruçada sobre o mundo que passa debaixo de mim.

Queria ligar-te, mas não posso. Liguei demasiadas vezes, fui ao teu encontro demasiadas vezes, e preciso de saber que também és capaz de engolir o orgulho, abdicar de um pouco para estar comigo. Quero que queiras estar ao meu lado, sem a certeza de que vou ao teu encontro onde quer que estejas, seja como for que a nossa relação esteja. Porque vou, e isso é uma certeza tão certa como a de que te amo, como nunca amei ninguém. Sabe Deus que estou disposto a toda e qualquer humilhação para te ter nos meus braços. Só não posso é viver sem saber se és capaz do mesmo.

Já me conheces, adivinhaste decerto que entre o amor e eu há uma relação de extremos. Sou louco o suficiente para largar tudo o que tenho e tudo o que sou, em teu nome, mas sensato o suficiente para não querer menos de ti. Desde que te vi sentada na cadeira da aula de inglês, desde que me apaixonei sem qualquer esperança de um sentimento correspondente da tua parte, desde que desisti de ti. Desde que te dei o primeiro beijo no meio da confusão, do fumo e do barulho do Triplex, e em cada segundo de todos os minutos de todas as horas de todos os dias destes últimos três anos, que sinto em mim algo que me avassala e me altera por completo cá dentro, pelo que não posso ser egoísta a ponto de não exigir sentimento menor dentro de ti. Seria injusto, estás a ver, não podemos construir um amor assente apenas numa pessoa, e eu não posso suportar toda a carga disto, não posso ser o único com vontade de largar tudo e correr para ti, como já fiz tantas vezes. Temos que nos esforçar ambos.

Mas também te conheço bem, e sei que não vais fazer isto. Pelo que talvez seguirmos caminhos diferentes, como me disseste, seja a melhor coisa a fazer. Se não queres deixar o teu caminho nem por um instante, para me acompanhares no meu - acompanhares-me apenas, sem palpites ou direcções, só confiança de que sei para onde vamos - que posso mais eu dizer ou fazer senão deixar-me estar parado, a ver-te partir? Que mais?

Só queria que não custasse tanto, e que não pairasse esta certeza de que foste o meu último amor, aquele que passamos a vida inteira a recordar, a lamentar que tenha nascido, e que tenha morrido. Queria ser um gato que brinca no escuro e não pensa em amores ou caminhos separados, queria que não houvessem mais certezas. De nada e de coisa alguma.

Imagem: Jim Zuckerman

domingo, fevereiro 11, 2007

Inside The Fire



“Como não percebo patavina disto, pensei "what the hell”, e se eu tentasse?". E tentei.”
Quarta-feira, Maio 24, 2006


Diz-nos a Patrícia, no seu blog, que é uma “mulher sonhadora (até à ingenuidade), que cresceu cedo demais”, e é bem verdade que os seus escritos deixam transparecer um certo encanto primordial de menina que descobre o mundo em cada olhar, mas também uma sensatez e força que só algumas mulheres parecem ter, e que se vislumbra não raro nas suas opiniões e nos comentários pessoais que deixam adivinhar, aqui e ali, pedaços da sua vida, e do seu universo.

A Patrícia tem os cabelos cor de fogo na fotografia que recebe os visitantes do blog, e não me refiro àquele fogo loiro que arde rápido e consome em segundos, mas sim ao fogo vermelho de combustão lenta, ondulante e sensual, que vai queimando devagar em torrentes de calor. E há um não sei quê de misterioso no rosto em perfil de uma mulher – bonita, por sinal – emoldurado em ondas de vermelho escuro, pousado num ramo, na enigmática contemplação de algo que se encontra fora do enquadramento da fotografia. É uma imagem de várias leituras, com diversos entendimentos, e que espelha de uma forma particularmente visual aquilo que podemos encontrar nos seus textos: intimidade incompleta.


“Sorrio e rio. Imenso. Com a mesma força com que solto lágrimas de fogo. Emoções ao rubro, sempre. E vale a pena.”
Terça-feira, Junho 27, 2006


É o que mais me agrada na Patrícia: é capaz de se expor de uma forma tão provocadoramente ingénua ao passante comum, e de revelar tanto do que lhe atravessa a alma, mas com o sempiterno cuidado de nos fazer perceber – sem palavras – que nada do que vemos e lemos se pode traduzir numa imagem definida e enquadrada. Como a fotografia que nos acolhe, há sempre algo que faz parte da imagem, mas está fora do alcance da objectiva. Num mundo em que cada vez mais as pessoas se fecham sobre si, isoladas em pequenos cubículos de intimidade ensaiada, a Patrícia vem quebrar as barreiras do self-containment e agracia-nos com pequenas fotografias incompletas da alma, retratos de retalhos da personalidade que não revelam mais do que o que as palavras encerram, mas permitem teorizar e imaginar o que desponta para além do teclado.


“Dou por mim a pensar que as pessoas já só teorizam sobre o Amor, já só o pensam em abstracto. Objectivamente, vêem-no em filmes, lêem-no em poemas, ouvem-no em músicas. Ainda o conseguem sentir? Algum dia conseguiram?”
Domingo, Maio 28, 2006


Não me recordo exactamente o que me trouxe ao seu blog, mas sei que foi numa daquelas noites em que decidi fazer zapping pelo universo bloguístico, pouco tempo depois de ter criado o meu próprio blog. Houve algo nos posts que me chamou a atenção, e desde essa altura que encontro sempre qualquer coisa nova naquilo que lhe leio, e vou construindo a imagem que tenho dela, embora nunca chegue verdadeiramente a saber para onde olha, que é o mesmo que dizer que há muito que fica por descobrir.

Já percebi, no entanto, que há muito em comum entre nós: seja pelas opiniões que partilhamos, pelo romantismo de que padecemos, pela paixão e compaixão pelos animais que defendemos, pelo gosto que temos em ler-nos, ou pelas curiosas coincidências que vamos descobrindo ao redor.


“Na minha vida, tudo parece acontecer com a celeridade e o impacto de uma rajada de vento. Aprendi a viver assim, a receber tudo o que surge com a ingenuidade da tábula rasa.”
Segunda-feira, Junho 19, 2006


E se coincidências não existem, como ambos parecemos acreditar, o que dizer do facto de os nossos blogs terem nascido no mesmo dia, separados por cerca de 12 horas, perfeitamente delineando a fronteira entre a luz e a escuridão que nos separa? Eu mantenho-me no fundo negro e mando mensagens criptografadas ao mundo, sob a forma de textos com pretensões literárias, e a Patrícia revela-se no fogo que incandesce, e abre o espírito em palavras que decifram o puzzle feminino da sua pessoa mas não deixam ver para além de onde a luz termina, e começa a noite.

É daí que nasce esta empatia que sinto por ela: como se, de alguma forma, duas pessoas que nunca se encontraram se possam conhecer através dos estranhos acasos que o destino vai desenhando, para cada um de nós. E não precisando de ver a Patrícia, ou de falar com ela cara a cara, sinto que está ali alguém que me compreende, ou poderia compreender. Alguém que me lê, e sabe exactamente o que está a ler, mesmo que essa compreensão nasça a partir do que ela sonha entender das minhas palavras, da mesma forma como eu adivinho o ponto para onde ela olha, com o queixo apoiado no ramo, de todas as vezes que a visito.

É para ela que olha (mulher menina que sonha com ingenuidade). E para nós.

Visitem-na.


“Mas aqui não cabe uma vida.”
Terça-feira, Outubro 24, 2006

Imagem: Hugo Logg