terça-feira, dezembro 05, 2006

Ramadão IX (por Neil Gaiman)

O rei dos sonhos mostrou-se surpreso:

Não tenho qualquer desejo de me tornar rei de uma terra de mortais.

‘Não. Não me compreendestes. ‘

Haroun Al Raschid ergueu os braços acima da cabeça, em direcção ao céu, como se desejasse abarcar no seu amplexo todas as torres e minaretes que refulgiam contra o firmamento.

‘Esta é a mais gloriosa cidade que Allah - louvado seja desde o nascer do sol na manhã até ao seu repouso no entardecer, e também durante a noite e nas horas que antecedem a madrugada – achou por bem criar com o propósito de abençoar o mundo. E esta época é a época perfeita. ‘

‘Durante quanto tempo poderá durar? Durante quanto tempo vão as pessoas recordar? ‘

O rei deixou cair os braços, e o seu olhar assumiu uma expressão vazia, de quem contempla para além do tempo e do espaço.

‘Eu vi o mundo, rei dos sonhos. ’

‘Eu cavalguei através dos desertos, e vi as pedras e velhas paredes e estátuas, desgastadas pelo vento do deserto, nas vastidões vazias de areia. E depois o vento e a areia sopram uma vez mais, os restos de cidades e palácios e deuses desvanecem-se para outra idade do homem. ‘

‘Esquecidos e jamais lembrados. ‘

Haroun Al Raschid pareceu de repente muito cansado e resignado.

‘Nunca poderá ser melhor do que isto, pois não? ‘

Talvez assim seja…

‘…mas só Allah sabe o que virá’ – completou o rei. – ‘É verdade. ‘

‘Eu sou Haroun Ibn Mohammed Ibn Ali Ben Abdullah Ibn Abbas, Califa de Bagdad’ – o rei parecia estar a falar para a cidade diante dos seus olhos. – ‘Eu proponho oferecer-vos a minha cidade. Eu proponho que a compreis de mim: que a leveis para os sonhos. ‘

E em troca? ‘ – perguntou o rei dos sonhos.

‘Em troca desejo que ela jamais morra. Que viva eternamente. Podeis conseguir isto? ‘

O rei dos sonhos não respondeu por momentos, absorto em reflexões, com a cabeça baixa. Depois ergueu os olhos para as torres e cúpulas cintilantes, e murmurou:

Sim. À minha maneira, posso fazê-lo.

‘E o que será necessário acontecer para que tal suceda? Haverá algum encantamento que necessitais de executar? Existirá alguma cruzada que terei de empreender, para algum país longínquo? Haverá alguma grandiosa acção? ‘

Não. Basta contar ao teu povo. Afinal, é a ti que ele segue. E é teu, o sonho.

‘Muito bem. ’

O rei caminhou com passos firmes e decididos para a praça, seguido de perto pela misteriosa figura, e parou junto à fonte no centro do recinto.

OUÇAM-ME, MEU POVO! EU, O VOSSO CALIFA HAROUN AL RASCHID, DA LINHAGEM DOS HASHIMI, PROCLAMO NESTE DIA, NESTE LUGAR, QUE EU OFERECI A IDADE DOURADA DE BAGDAD, DA ARÁBIA, A ESTE QUE ESTÁ AO MEU LADO. ‘

‘SERÁ SUA ETERNAMENTE, ENQUANTO A HUMANIDADE DURAR…


‘…e o nosso mundo não for esquecido.

O tapete que pairava graciosamente acima do mercado pareceu estremecer durante um segundo, e toda a força que o sustentava desapareceu, fazendo com que tombasse em espirais, devagar, no chão, levantando uma nuvem de poeira.


continua...

6 comentários:

Flávio disse...

Viva! Tomei a liberdade de nomear o teu blogue para Melhor Blogue de Cultura no Lauro António Apresenta. Se puderes, dá lá um pulo.

Sandman disse...

Ola! Obrigado pela nomeação, Flávio, não estava realmente à espera. Fico contente que consideres o meu blog nomeável, mas, pessoalmente (e aqui não vou aplicar ditado "uma mão lava a outra" porque não é do que se trata) acho que o teu blog merecia mais essa nomeação (e talvez uns quinhentos mais, na blogoesfera :).

Já dei uma vista de olhos no blog, vou tentar votar!

Abraço

Patrícia disse...

Acho que tens boas hipóteses de ganhar, Sandman. Tens aqui um blog excepcional. :)

Beijinhos

Flávio disse...

Já agora, bom Natal ao Sandman e a todos os frequentadores deste blogue.

Anónimo disse...

Feliz dia de Natividade!

Sandman disse...

Estou atrasado, mas desejo a todos um Feliz Natal (mesmo que seja já o de 2007).

:) Ou então... um feliz ano novo, e um feliz dia de Reis. Enfim, desejo-vos coisas boas.