quarta-feira, dezembro 27, 2006

Ramadão X (por Neil Gaiman)

Haroun Al Raschid acordou confuso, como se ainda estivesse dentro de um sonho, ao som de uma voz preocupada:

‘Grande Califa? ’

Era um dos guardas do palácio, um gigantesco núbio de pele escura como as rochas do deserto. O rei estava deitado sobre um tapete de sarja castanha, velho, sujo de terra, ao lado da fonte decadente da praça do mercado, e permitiu que o guarda o ajudasse a colocar-se de pé.

‘Grande Rei, vós saístes do palácio. Temos estado à vossa procura. O que aconteceu? Porque viestes aqui, ao mercado? ’

O rei levou uma mão à cabeça, como se tentasse reter alguma lembrança:

‘Eu… eu não sei, Masrur. Tive um sonho, creio, mas está a desvanecer-se. ’

‘Uma insolação, talvez, Senhor. Pode fazer estranhas coisas a um homem. ’

‘Talvez… ’

‘Vamos voltar para o palácio, Lorde. ’

‘Sim. ’

O tapete esfarrapado ficou abandonado no chão de terra batida, enquanto o califa se afastava, devagar, amparado pelo enorme negro. Saíram do mercado e entraram numa das vielas sujas da cidade, apertadas pelas casas feitas de barro vermelho e edifícios gastos e decadentes, muitos deles quase em ruínas, que se espalhavam em todas as direcções, num labirinto de pobreza e desolação. À medida que caminhava, o rei abandonou o amplexo protector do escravo, e assumiu uma postura altiva, pois que estava afinal na sua cidade, embora envelhecida e humilde, e entre o seu povo, ainda que miserável.

Ao passarem por uma banca de frutas do deserto, o rei reparou numa figura de aspecto pálido, encostada a uma das traves de madeira que suportavam o toldo da loja. A figura estava imersa em pensamentos, e trazia uma garrafa de vidro cristalino nos braços, do tamanho de um cântaro de água.

‘Ei! Estranho, o que é isso que carregas? ’ – perguntou o rei.

‘Uma cidade numa garrafa.’ – respondeu a figura misteriosa.

O rei debruçou-se sobre o objecto, e viu uma maravilhosa cidade dentro da garrafa, com torres brilhantes que alcançavam as nuvens, e fantásticas cúpulas douradas que refulgiam os raios de um minúsculo sol. Pequenas figuras em miniaturas de tapetes voadores atravessavam o céu da cidade, sobre uma praça com uma grandiosa fonte ao centro, onde um pequeno homem, de ricos trajes, discursava perante uma multidão que o cercava.

‘É um mecanismo deveras engenhoso, e de primorosa execução. ’ – disse o rei, espantado. – ‘Fostes vós que o construístes? Está à venda? ’

‘Não fui eu que o construí. Foi-me oferecido. E já não está à venda… ’

‘É muito bela. ’ – disse o rei, pensativo.

‘Sim. ’

O rei sorriu, como uma criança que acabou de reencontrar um brinquedo muito amado, e acariciou ao de leve a garrafa.

‘Senhor, temos que voltar para o palácio. ’ – lembrou o guarda.

‘Sim, Masrur. ’

O rei e o escravo afastaram-se devagar, com o Califa a olhar ocasionalmente para trás, e entraram num edifício de cúpula alta e ornamentada, já a denotar as marcas do tempo nas rachaduras da superfície. A figura pálida, com a garrafa nos braços, ficou parada a observá-los, e no momento em que o rei desapareceu por entre as portas do palácio, sorriu imperceptivelmente, sem que ninguém soubesse se era de tristeza, se de alegria, o sorriso.

E foi assim que dizem que aconteceu. Mas só Allah o saberá com certeza.”

………………….

O menino tinha a pele escura, e o cabelo desgrenhado, coberto de poeira. Vestia uma camisa rasgada e calções de cor esbatida, e apoiava-se numa muleta velha, de madeira. Trazia os pés cobertos por meias, e a perna do lado da muleta estava enfaixada em trapos sujos.

‘Mas o que aconteceu a Haroun Al Raschid? ’ – perguntou. – ‘Ou à velha cidade de Bagdad? Ou ao…’

O velho mendigo, sentado à sua frente com as pernas cruzadas, interrompeu-o, enquanto recolhia o prato com moedas:

‘Espera, pequeno. Tens mais alguma moeda? ‘

‘…não. ’

‘Mais alguns cigarros? ’

‘Não. ’

‘Então creio ter falado demasiado, por hoje. Se estiveres aqui amanhã, talvez te conte mais. Vai para casa, rapaz. Estes são maus tempos, e a tua mãe deve estar preocupada. ’

O velho levantou-se a custo, recolheu as moedas ganhas para um dos bolsos, e começou a caminhar para longe.

‘Mas como é que funcionou? ’ – chamou o rapaz. – ‘A barganha? Como poderia a cidade durar? ’

‘Vai para casa. ’ – respondeu o velho, sem olhar para trás.

Sem ter obtido resposta às suas perguntas, Hassan voltou para casa, escolhendo cuidadosamente o caminho por entre uma série de atalhos descobertos por crianças, através das áreas bombardeadas e dos escombros de Bagdad.

E, embora o seu estômago doa (pois jejuar é fácil, neste Ramadão, e a comida é difícil de obter) a sua cabeça está erguida, e os seus olhos ganharam um novo brilho. Pois, por detrás do seu olhar, estão torres e jóias e djinn, tapetes e anéis, reis e princesas, e cidades de bronze.

E ele reza, enquanto caminha (amaldiçoando a sua perna fraca, ao mesmo tempo). Reza a Allah (que criou todas as coisas) que algures, na escuridão dos sonhos, ainda exista a outra Bagdad (a que jamais poderá morrer), e o outro ovo da fénix.

Mas só Allah o saberá.

FIM

terça-feira, dezembro 05, 2006

Ramadão IX (por Neil Gaiman)

O rei dos sonhos mostrou-se surpreso:

Não tenho qualquer desejo de me tornar rei de uma terra de mortais.

‘Não. Não me compreendestes. ‘

Haroun Al Raschid ergueu os braços acima da cabeça, em direcção ao céu, como se desejasse abarcar no seu amplexo todas as torres e minaretes que refulgiam contra o firmamento.

‘Esta é a mais gloriosa cidade que Allah - louvado seja desde o nascer do sol na manhã até ao seu repouso no entardecer, e também durante a noite e nas horas que antecedem a madrugada – achou por bem criar com o propósito de abençoar o mundo. E esta época é a época perfeita. ‘

‘Durante quanto tempo poderá durar? Durante quanto tempo vão as pessoas recordar? ‘

O rei deixou cair os braços, e o seu olhar assumiu uma expressão vazia, de quem contempla para além do tempo e do espaço.

‘Eu vi o mundo, rei dos sonhos. ’

‘Eu cavalguei através dos desertos, e vi as pedras e velhas paredes e estátuas, desgastadas pelo vento do deserto, nas vastidões vazias de areia. E depois o vento e a areia sopram uma vez mais, os restos de cidades e palácios e deuses desvanecem-se para outra idade do homem. ‘

‘Esquecidos e jamais lembrados. ‘

Haroun Al Raschid pareceu de repente muito cansado e resignado.

‘Nunca poderá ser melhor do que isto, pois não? ‘

Talvez assim seja…

‘…mas só Allah sabe o que virá’ – completou o rei. – ‘É verdade. ‘

‘Eu sou Haroun Ibn Mohammed Ibn Ali Ben Abdullah Ibn Abbas, Califa de Bagdad’ – o rei parecia estar a falar para a cidade diante dos seus olhos. – ‘Eu proponho oferecer-vos a minha cidade. Eu proponho que a compreis de mim: que a leveis para os sonhos. ‘

E em troca? ‘ – perguntou o rei dos sonhos.

‘Em troca desejo que ela jamais morra. Que viva eternamente. Podeis conseguir isto? ‘

O rei dos sonhos não respondeu por momentos, absorto em reflexões, com a cabeça baixa. Depois ergueu os olhos para as torres e cúpulas cintilantes, e murmurou:

Sim. À minha maneira, posso fazê-lo.

‘E o que será necessário acontecer para que tal suceda? Haverá algum encantamento que necessitais de executar? Existirá alguma cruzada que terei de empreender, para algum país longínquo? Haverá alguma grandiosa acção? ‘

Não. Basta contar ao teu povo. Afinal, é a ti que ele segue. E é teu, o sonho.

‘Muito bem. ’

O rei caminhou com passos firmes e decididos para a praça, seguido de perto pela misteriosa figura, e parou junto à fonte no centro do recinto.

OUÇAM-ME, MEU POVO! EU, O VOSSO CALIFA HAROUN AL RASCHID, DA LINHAGEM DOS HASHIMI, PROCLAMO NESTE DIA, NESTE LUGAR, QUE EU OFERECI A IDADE DOURADA DE BAGDAD, DA ARÁBIA, A ESTE QUE ESTÁ AO MEU LADO. ‘

‘SERÁ SUA ETERNAMENTE, ENQUANTO A HUMANIDADE DURAR…


‘…e o nosso mundo não for esquecido.

O tapete que pairava graciosamente acima do mercado pareceu estremecer durante um segundo, e toda a força que o sustentava desapareceu, fazendo com que tombasse em espirais, devagar, no chão, levantando uma nuvem de poeira.


continua...