terça-feira, novembro 14, 2006

Ramadão IV (por Neil Gaiman)

Passados alguns instantes, o rei retirou uma chave dourada de um fio que trazia ao pescoço, e desceu para as profundezas do seu palácio. Passou pelo salão das mulheres (onde homem algum – excepto ele mesmo – pode entrar e manter a sua masculinidade), desceu até ao lugar da justiça e tortura, onde os prisioneiros que esperavam pela misericórdia real aguardavam pacientes, e prosseguiu ainda mais fundo, para além das masmorras, onde aqueles que a misericórdia real havia esquecido esperavam em vão, com faces pálidas, barbas brancas, olhos desesperados e loucos.

Depois de algum tempo o rei alcançou uma porta gigantesca de ferro negro, esculpida com muitos símbolos e pinturas e padrões. Ele abriu a porta com a chave de ouro, e desceu ainda mais.

Agora os degraus eram estreitos e húmidos, o ar escondia figuras difusas e rostos, e o rei julgou ouvir as vozes daqueles que havia amado e assassinado através dos anos: a rapariga pálida das terras do Norte, com cabelos como prata; o rapaz do deserto que lhe trouxera uma rosa esculpida de quartzo rosa-claro, e ficara no palácio por um ano e um dia; o capitão da guarda do palácio que, para além do rei, era o mais exímio arqueiro, espadachim, e lanceiro da cidade, mas que tinha, talvez, cobiçado o trono. Ele ouviu muitas vozes, mas não lhes prestou atenção.

Finalmente, Haroun Al Raschid chegou a uma porta de bronze, enfaixada com tiras de cobre verde e incrustada com madrepérola. Ele abriu a porta com a chave de ouro, e desceu ainda mais.

O rei entrou então no labirinto, que percorreu de olhos fechados, a contar os passos em frente, para a esquerda e direita, na sua mente. A porta seguinte era de madeira, sem ornamentos, e também essa ele abriu com a chave de ouro. Tochas brilharam e crepitaram assim que ele entrou, cobrindo a sala com uma radiância faiscante, mas ele não olhou para a esquerda ou para a direita. Diamantes e rubis, esmeraldas e safiras, ametistas e pérolas estavam amontoados em pilhas promíscuas, nunca contadas, talvez incontáveis.

Havia um quarto com apenas espadas encantadas suspensas no tecto, e outro cheio de lâmpadas, anéis e cálices de estranhas virtudes e poderes; outro não continha mais do que ovos, de todos os formatos e tamanhos, desde o ovo do Vermillion que é tão grande quanto a mais pequena unha de uma criança, até a um ovo mais largo do que um homem, o ovo do Rukh, um pássaro que faz o seu ninho nas montanhas e caça touros-elefantes para alimentar a sua prole.

E também havia, naquele quarto, o Outro Ovo da Fénix (pois a Fénix, quando chega o seu tempo de morrer, põe dois ovos, um preto, um branco. Do ovo branco nasce o próprio pássaro Fénix, quando chega o seu tempo, mas ninguém sabe o que nasce do ovo preto). Haroun Al Raschid passou por estes quartos e o seu olhar não pestanejou para nenhum dos lados. Parecia-lhe que havia caminhado no silêncio por muitos quilómetros, debaixo do palácio, quando alcançou a última porta, e esta era uma porta de chamas, que também abriu com a chave dourada.

O quarto estava vazio, excepto por uma bola de vidro pousada numa almofada de cetim. Dentro da bola nevoeiros coloridos contorciam em espirais, e na superfície existia um selo. Haroun Al Raschid retirou a bola da almofada e saiu do quarto. Ele carregava-a com cuidado, e a sua respiração era fraca e rápida. Existiam percursos através do palácio que ninguém senão ele conhecia, e isto era porque aqueles que haviam desenhado os planos, e aqueles que haviam construído os percursos, já tinham recebido há muito a sua recompensa final, pois não é saudável conhecer os segredos de um rei.

Ele prosseguiu, degrau a degrau, a subir cada vez mais, até alcançar uma parede de tijolos, sólida. Tocou levemente um tijolo, não diferente dos restantes, e a parede deslizou para o lado e ele saiu gentilmente para o terraço mais elevado do palácio, no exterior. Imagine um milhão de milhares de pirilampos de todas as formas e cores; era assim o céu de Bagdad naqueles tempos, à noite, e os barcos ainda navegavam o rio com lanternas nos seus mastros, e os sons da noite na cidade subiam para um céu pejado de estrelas e bolas de fogo. Muito, muito suavemente, o rei começou a falar:

continua...

2 comentários:

Patrícia disse...

valeu a pena esperar. :)

Sandman disse...

A história é fantástica, mas realmente empalidece muito perante o original em BD. Não tem um quarto da força, da poesia...

Talvez um dia destes te empreste os meus volumes do "Sandman" ara te deliciares...

:)