quarta-feira, novembro 29, 2006

34


O serviço normal será retomado dentro de breves instantes, assim que o distinto autor do blog recuperar das vaporosas efluências alcoolizantes induzidas pelos amigos, na euforia geral da respectiva data de celebração.

(pelo menos não me esqueci da promessa de mudar a cor do blog quando este dia chegasse)

:)

sábado, novembro 25, 2006

Ramadão VIII (por Neil Gaiman)


Haroun Al Raschid e o senhor dos sonhos começaram a passear devagar, pelo mercado.

Grandes senhores!’ – exclamou sorridente um vendedor, quando se aproximaram da sua banca. – ‘Posso interessar-vos nestas finas doçarias? Nunca provareis semelhante, pois eu, Hassan o Doceiro, fi-las com especiarias e mel e requintados vinhos, de uma receita divulgada por um mercador que naufragou numa ilha habitada apenas por…’ – a voz do doceiro era abafada pela multidão, ouvindo-se a intervalos. – ‘… e ele pensou, primeiro…’ – o rei e a sua companhia passaram pela tenda, lançando apenas um olhar cortês aos doces que o homem estendia, convidativo. – ‘…o pequeno hominídeo cuja única alegria era a preparação de…

Lordes!’ – gritou outro mercador, em frente a um estrado onde se exibia uma mulher alva de aspecto lânguido como um felino, com orelhas de gato e cauda listada como a de um tigre. – ‘Tenho aqui uma escrava, para venda, da mais exótica espécie. Primeiro, examinem a sua pele. Não é da mais consumada brancura? Depois, chamo a vossa atenção para os seus olhos…

Nobres senhores, não lhe deis atenção! ‘ – disse um curioso, no meio da multidão. – ‘É um ladrão e um mentiroso, e um mágico. Há um mês vendeu-me um asno, que se sentava no meu estábulo e comia do mais fino grão e feno e frutos verdes, até que um dia este filho de uma cadela (que vos venderia a cidade de Bagdad e a mãe das vossas esposas, e as vossas mãos esquerdas, se lhe désseis oportunidade) veio à minha casa e disse-me que o asno que me vendera era, na verdade, uma bela donzela que fora enfeitiçada pela sua invejosa irmã, que era na verdade uma bruxa, e que desejava comprá-la de volta. Como, pode então este asno ser transformado em uma mulher novamente, perguntei-lhe eu…’ – o apregoar do homem perdeu-se na distância, à medida que as duas figuras se afastavam.

Haroun Al Raschid parou em frente a uma banca de frutas.

‘Dou-lhe um dirham por estas miseráveis uvas. ‘ – ofereceu ao vendedor, apontando para os cachos expostos.

Um dirham? ‘ – o vendedor levou as mãos ao peito, aparentando surpresa. – ‘Por estas uvas – cada uma delas um perfeito globo tão requintado que, fossem elas transformadas em vinho, este só seria apropriado para o nosso próprio Califa, Haroun Al Raschid, que Allah proteja e ilumine? Três dirhams e não menos.

‘Dois.’

Certamente, senhor, sois muito generoso. ‘ – replicou o vendedor, enquanto recebia as moedas e entregava um cacho luzidio. – ‘Aqui tem, leve também estas duas finas ameixas, com os meus cumprimentos. Há uma história, aliás, que acompanha estas ameixas…

‘Estou certo que sim, e agradeço-lhe a oferta. ‘ – disse o rei, afastando-se. – ‘Mas por agora tenho certos assuntos para tratar. ‘

Os dois caminharam para longe da multidão, e pararam debaixo de umas arcadas rodeadas por colunas intricadamente esculpidas, de onde se podia observar todo o mercado, e as torres douradas ao seu redor.

‘Uma uva, Senhor dos Sonhos? ‘ – ofereceu Haroun Al Raschid.

Durante o Ramadão? Entre a madrugada e o anoitecer?

‘Não importa. Olhe à sua volta, Rei dos Sonhos. O que vê? ‘

Vejo um lugar notável.

‘Decerto. É uma terra de milagres.’

O rei pausou longamente, os olhos distraídos a passearem em volta, até que perguntou, num suspiro:
‘Ireis comprá-la, de mim? ‘
continua...

quarta-feira, novembro 22, 2006

Ramadão VII (por Neil Gaiman)


O rei bateu novamente palmas, e ordenou aos servos que imediatamente acorreram de cabeças baixas e mãos erguidas:

‘Nos meus aposentos encontra-se uma arca que pertencia ao meu pai, e ao seu pai antes dele. Tragam-na até mim. ‘

Os serviçais desapareceram por instantes, e voltaram trazendo uma caixa de madeira de sândalo, gravada com estranhos desenhos em marfim e madrepérola, que colocaram aos pés do rei. Ele abriu a caixa com as suas próprias mãos, e retirou um pequeno tapete de aparência puída e pouco notável, que estendeu no chão. Depois, o rei subiu para o tapete cuidadosamente, quase com reverência, ainda que não fosse um tapete de oração, e indicou ao senhor dos sonhos que ocupasse o espaço vazio, ao seu lado.

Haroun Al Raschid disse uma palavra três vezes, e à terceira repetição o tapete ergueu-se no ar, devagar e em silêncio, a brilhar levemente. Começaram a descer suavemente, por entre as cúpulas douradas e minaretes cor de jade, o rei de Bagdad acocorado à frente, como vulgar pastor de cabras do deserto, e o seu pálido companheiro sentado nas bordas do tapete, atrás dele, os pés a balançarem no vazio.

‘Olhe para a minha cidade, Lorde dos Sonhos. ‘ – disse o rei, enquanto se deitava sobre o tecido gasto, de olhos postos no chão que se aproximava lentamente.

Estou a vê-la.’ – respondeu o passageiro.

‘É uma cidade de maravilhas, de espantos. Estes são os dias das maravilhas. Esta é a minha cidade. Sou responsável por ela. ‘ – abaixo deles surgiu uma enorme praça coberta de tendas e de multidão atarefada, com uma bela fonte ao centro, rodeada por um pequeno lago artificial. – ‘Ah! O soukh. Desce, ó tapete. Vamos tratar de negócios no mercado. ‘

O tapete depositou os viajantes no centro da praça, ao lado da enorme fonte. À sua volta redemoinhava um turbilhão de pessoas que circulavam devagar, parando ocasionalmente para observar os artigos expostos nas tendas coloridas. Viam-se vendedores de fruta que regateavam teimosamente com os seus clientes enquanto crianças de turbante aproveitavam a distracção dos adultos para roubarem umas peças de fruta, e ferreiros a afiarem espadas, por entre uma infinidade de lâminas penduradas em traves de bambu. A um canto uma dama de pele escura e rosto escondido por um véu segurava uma frágil corrente que prendia pelo pescoço um gorila de aspecto feroz, e noutra tenda grasnavam aves exóticas de penas multicolores. O rei apeou-se do tapete e ordenou, com as mãos na cintura e o rosto respeitosamente a fitar o chão:

‘Agora, espera alto acima do soukh, meu tapete. Chamar-te-ei se tiver necessidade de ti. ‘ – ao que o tapete prontamente obedeceu, levantando voo até se tornar uma pequena mancha, por entre o azul do céu.
continua...

sexta-feira, novembro 17, 2006

Ramadão VI (por Neil Gaiman)



Haroun Al Raschid lançou o globo no vazio, e dentro deste surgiu uma nuvem escura, como se estivesse cheio de insectos, uma nuvem que se expandia cada vez mais, à medida que o globo descia em direcção ao chão, até revelar milhares de olhos malévolos e dentes afiados, a anteciparem a orgia de destruição. O globo aproximou-se vertiginosamente do chão, cada vez mais perto, e foi apanhado por duas mãos esguias que surgiram vindas do nada, pálidas como mármore, a milímetros de se desfazer em milhões de pedaços.

Chamaste-me, e eu vim. ‘ – disse o rei dos sonhos.

‘Sois vós, então, o Senhor do Sono, o Príncipe das Histórias, aquele ao qual Allah deu o domínio sobre o que é e o que não é, e o que não era e nunca será?’ – perguntou o rei.

Tu sabes quem chamaste, Haroun Al Raschid.’ – havia uma nota de desagrado velado na voz sombria.

‘Vinho! Vinho para o nosso visitante! ‘ – chamou o rei, olhando para trás e batendo palmas.

Este mês é o Ramadão, ó Rei, quando os fiéis jejuam desde o amanhecer até ao anoitecer, e não proibiu o profeta o vinho? ‘ – o rei dos sonhos pairava acima do abismo diante de Haroun Al Raschid, e segurava o enorme globo de cristal entre as mãos, como uma oferenda.

‘Sois vós, então, da verdadeira fé, meu pálido companheiro? ‘ – perguntou o rei.

Eu pertenço a todas as fés, à minha maneira, Haroun Al Raschid, e não tenho qualquer desejo de tomar vinho contigo. ‘ – a figura de pele alva e olhos onde brilhavam estrelas silenciou por um instante, para melhor vincar o sentido das suas palavras, e depois prosseguiu, numa voz grave e pausada: - ‘Agora, talvez seja a altura de me dizeres porque não deveria eu deixar este lugar imediatamente, levando comigo a tua bola de pequenos incómodos?

E também, posso acrescentar, levando comigo a lembrança de ter sido convocado, peremptoriamente, como quem convoca um mero serviçal.

Eu não sou um serviçal, ó Rei, e não me agradam convocações.

Haroun Al Raschid sentiu gotas de suor perlarem-lhe a testa, ao ouvir estas palavras, e observou o rei dos sonhos enquanto este abria o seu manto negro – raiado de flores e estrelas em movimento – e guardava o globo de cristal, que pareceu desaparecer nas pregas do tecido, como se nunca, na verdade, tivesse existido. E disse, pesando as palavras com cautela:

‘Há uma história que contam de um pescador que apanhou uma garrafa de jade nas suas redes, e que abriu a garrafa e libertou um génio... ‘

Na história ele convenceu o génio a voltar para dentro da garrafa. Mas o génio era um tolo fanfarrão, e solitário. Eu não sou nenhuma dessas coisas. Chamaste-me aqui, Haroun, e não é sensato convocar o que não podes desconvocar.

‘Estais a ameaçar-me? ‘

Eu não ameaço, apenas advirto cautela.

‘Sim. Percebo as vossas palavras. Porque vos chamei aqui? Chamei-vos aqui… creio, para fazer uma barganha. Se estiverdes dispostos a negociar comigo. ‘

Estamos a negociar? No palácio do Líder dos Fiéis? As barganhas fazem-se no soukh, o mercado.

Haroun Al Raschid acedeu, pensativo:
‘Sim, talvez se façam. Muito bem, desloquemo-nos então para o mercado.’
continua...

quarta-feira, novembro 15, 2006

Ramadão V (por Neil Gaiman)


‘Sou o Califa de Bagdad. De um rei para outro, eu chamo-vos, rei dos sonhos, lorde do sono. Estais aí? Eu exijo que vos apresenteis perante mim, aqui, numa forma que não seja nem ameaçadora ou desagradável para os meus olhos. Vinde, ó rei. ‘

Mas o rei não obteve resposta, excepto pelo restolhar de umas pombas que passaram acima da sua cabeça.

‘Sou Haroun Ibn Mohamed Ibn Abdullah Ibn Abbas, chamado de Al Raschid, o primeiro entre os fiéis, e minha é a glória e a cidade de Bagdad, a pérola das cidades. Eu conjuro-vos, ó rei dos sonhos, príncipe das histórias, senhor das marchas adormecidas. Vinde para mim. ‘

Mas não se ouviu qualquer som, a não ser o sussurro do vento e o último chamado de um pássaro nocturno do deserto.

Haroun Al Raschid estremeceu.

‘Muito bem. ‘

‘Nas minhas mãos seguro o globo de Sulaiman Bem Daoud, rei dos Hebreus. Foi neste globo, perto do fim da sua vida, que ele aprisionou novecentos mil e nove Ifrits, Djinn, e demónios.‘

‘Estes eram os mais sombrios espíritos, os maiores e os mais poderosos. E, um a um, ele confinou neste globo de cristal, que fechou com o seu selo. Isto aconteceu há quase dois mil anos. Durante os anos em que estes Ifrits – os seus corações mais negros do que a escuridão – estiveram aprisionados, cada um deles fez um juramento solene de desabar vingança nas crianças de Adão nosso pai, de destruir o nosso trabalho, as nossas mentes e os nossos sonhos. ‘

‘Este é um globo do mais excelente vidro, e quando se estilhaçar eles vão emergir como bestas ensandecidas de destruição. ‘

‘Se não vierdes até mim, eu estilhaçarei o globo. ‘

Ainda assim, o rei não obteve resposta, e os seus olhos semicerraram-se, quase com uma desprendida indiferença.
‘Muito bem. ‘

continua...

terça-feira, novembro 14, 2006

Ramadão IV (por Neil Gaiman)

Passados alguns instantes, o rei retirou uma chave dourada de um fio que trazia ao pescoço, e desceu para as profundezas do seu palácio. Passou pelo salão das mulheres (onde homem algum – excepto ele mesmo – pode entrar e manter a sua masculinidade), desceu até ao lugar da justiça e tortura, onde os prisioneiros que esperavam pela misericórdia real aguardavam pacientes, e prosseguiu ainda mais fundo, para além das masmorras, onde aqueles que a misericórdia real havia esquecido esperavam em vão, com faces pálidas, barbas brancas, olhos desesperados e loucos.

Depois de algum tempo o rei alcançou uma porta gigantesca de ferro negro, esculpida com muitos símbolos e pinturas e padrões. Ele abriu a porta com a chave de ouro, e desceu ainda mais.

Agora os degraus eram estreitos e húmidos, o ar escondia figuras difusas e rostos, e o rei julgou ouvir as vozes daqueles que havia amado e assassinado através dos anos: a rapariga pálida das terras do Norte, com cabelos como prata; o rapaz do deserto que lhe trouxera uma rosa esculpida de quartzo rosa-claro, e ficara no palácio por um ano e um dia; o capitão da guarda do palácio que, para além do rei, era o mais exímio arqueiro, espadachim, e lanceiro da cidade, mas que tinha, talvez, cobiçado o trono. Ele ouviu muitas vozes, mas não lhes prestou atenção.

Finalmente, Haroun Al Raschid chegou a uma porta de bronze, enfaixada com tiras de cobre verde e incrustada com madrepérola. Ele abriu a porta com a chave de ouro, e desceu ainda mais.

O rei entrou então no labirinto, que percorreu de olhos fechados, a contar os passos em frente, para a esquerda e direita, na sua mente. A porta seguinte era de madeira, sem ornamentos, e também essa ele abriu com a chave de ouro. Tochas brilharam e crepitaram assim que ele entrou, cobrindo a sala com uma radiância faiscante, mas ele não olhou para a esquerda ou para a direita. Diamantes e rubis, esmeraldas e safiras, ametistas e pérolas estavam amontoados em pilhas promíscuas, nunca contadas, talvez incontáveis.

Havia um quarto com apenas espadas encantadas suspensas no tecto, e outro cheio de lâmpadas, anéis e cálices de estranhas virtudes e poderes; outro não continha mais do que ovos, de todos os formatos e tamanhos, desde o ovo do Vermillion que é tão grande quanto a mais pequena unha de uma criança, até a um ovo mais largo do que um homem, o ovo do Rukh, um pássaro que faz o seu ninho nas montanhas e caça touros-elefantes para alimentar a sua prole.

E também havia, naquele quarto, o Outro Ovo da Fénix (pois a Fénix, quando chega o seu tempo de morrer, põe dois ovos, um preto, um branco. Do ovo branco nasce o próprio pássaro Fénix, quando chega o seu tempo, mas ninguém sabe o que nasce do ovo preto). Haroun Al Raschid passou por estes quartos e o seu olhar não pestanejou para nenhum dos lados. Parecia-lhe que havia caminhado no silêncio por muitos quilómetros, debaixo do palácio, quando alcançou a última porta, e esta era uma porta de chamas, que também abriu com a chave dourada.

O quarto estava vazio, excepto por uma bola de vidro pousada numa almofada de cetim. Dentro da bola nevoeiros coloridos contorciam em espirais, e na superfície existia um selo. Haroun Al Raschid retirou a bola da almofada e saiu do quarto. Ele carregava-a com cuidado, e a sua respiração era fraca e rápida. Existiam percursos através do palácio que ninguém senão ele conhecia, e isto era porque aqueles que haviam desenhado os planos, e aqueles que haviam construído os percursos, já tinham recebido há muito a sua recompensa final, pois não é saudável conhecer os segredos de um rei.

Ele prosseguiu, degrau a degrau, a subir cada vez mais, até alcançar uma parede de tijolos, sólida. Tocou levemente um tijolo, não diferente dos restantes, e a parede deslizou para o lado e ele saiu gentilmente para o terraço mais elevado do palácio, no exterior. Imagine um milhão de milhares de pirilampos de todas as formas e cores; era assim o céu de Bagdad naqueles tempos, à noite, e os barcos ainda navegavam o rio com lanternas nos seus mastros, e os sons da noite na cidade subiam para um céu pejado de estrelas e bolas de fogo. Muito, muito suavemente, o rei começou a falar:

continua...

sábado, novembro 11, 2006

Ramadão III (por Neil Gaiman)

Meu marido e meu rei? ‘ – perguntou.

‘Sim, minha senhora? ‘

Vejo que estás preocupado.

‘Vês correctamente. ‘

Vem comigo. Deixa-me untar a tua testa com óleo morno, e acariciar-te com as minhas mãos gentis. Posso fazer-te esquecer os problemas por entre os meus seios, e posso afagar para longe a escuridão na tua alma, por entre as minhas coxas.

‘Agradeço-te, minha senhora, minha rainha, mas devo recusar. ‘ – E ela deixou-o.

O Vizir – seu amigo, Jafar o Barmakid – veio à sua presença.

Vem, vamos disfarçar-nos e caminhar pela cidade. ‘ – disse. – ‘Sem dúvida que encontraremos algum nobre sob um qualquer encantamento. Ou três mulheres, esguias como gazelas, aprisionadas numa casa de jade branco. Ou um louco vagabundo com uma história de espíritos malignos do deserto para contar, e…

‘Não. ‘ – interrompeu o rei.

Permite-me então que mande trazer vinho e comida, e chame contadores de hstórias, para que possamos proclamar que aquele que contar a mais estranha e verdadeira história…

‘É Ramadão, Jafar, quando jejuamos desde o nascer até ao por do sol. E o Profeta proibiu o vinho. ‘

Mas…

‘Não, velho amigo. ‘ – e o rei apontou para a cidade resplandecente abaixo deles. – ‘Olha para a nossa cidade. Não é maravilhosa? Existirá alguma outra como ela? ‘

Se Allah o desejar…

‘Ah. Mas não está destinado a homem algum conhecer a vontade de Allah.’ – e a face do rei ensombrou-se com estranhos e tristes pensamentos. – ‘Deixa-me. ‘

Ele permaneceu no varandim até que a noite caiu, e a primeira estrela brilhou acima das espirais da cidade. E nessa altura veio à sua presença Ishak, o maior poeta daquele tempo, aquele que podia tecer palavras como fios de seda enredados em linhas de ouro.

Grande rei. ’ – disse o poeta.

‘Saudações, fiandeiro de palavras. ‘

Meu rei, estás preocupado. Posso tocar para ti, ou cantar?

‘Não. Há um peso no meu peito e no meu semblante, mas a arte e palavras bonitas não o levantarão. Ai de mim. Existiu alguma vez uma cidade como a minha, ou um povo como o meu? ‘

Não, grande rei. ‘ - respondeu o poeta.

‘Embaixadores vêem aqui dos confins da terra, para testemunharem este milagre. Voltam para os seus reis dizendo que viram a cidade perfeita, e que nunca poderá existir outra igual. E os seus reis ficam insatisfeitos com os seus pequenos feudos e domínios, pois sabem que nunca se poderão comparar a Bagdad, a jóia das cidades. ‘

O rei baixou a cabeça e acrescentou, num murmúrio:

‘É assim. Mas todas as coisas passam. Deixa-me. Não necessito de poetas. ‘ – e permaneceu no varandim, a observar a mais gloriosa cidade sobre a terra.
continua...

quinta-feira, novembro 09, 2006

Ramadão II (por Neil Gaiman)


‘Pois aqueles eram os dias das maravilhas, e Haroun Al Raschid era um rei sapiente. Quando se sentava em julgamento, até os sábios ficavam atónitos com a sagacidade dos seus veredictos, e sob o seu reinado a cidade prosperou, e toda a Arábia floresceu e tornou-se forte.

Mas Haroun Al Raschid tinha inquietações na sua alma.

E nessas alturas, quando a escuridão descia sobre a sua fronte, ele saía por uma noite para a cidade de Bagdad, levando consigo apenas o seu amigo Vizir Jafar, e Masrur, o seu executor. Vestidos como mercadores de uma terra distante, eles percorriam a cidade, a experimentarem os seus prazeres e saborearem as suas bebidas, a enobrecerem os virtuosos e os artistas, e a repudiarem os malévolos e os preguiçosos.

Desta forma encontraram histórias mais estranhas do que as que alguém pudesse contar até aquela altura, mesmo no mercado de Bagdad. Foi nessa altura que Haroun Al Raschid elevou um miserável pedinte ao Califado, por um dia de sonho, e também quando o Grande Rei testemunhou a morte de um corcunda e admirou-se dos sete estranhos que confessaram o seu assassínio, ainda que o pobre tolo se tivesse engasgado com uma espinha de peixe. E aconteceu em Bagdad, cidade das cidades, cidade acima das cidades, que o Rei e o seu Vizir testemunharam o único voo do cavalo alado, todo feito de vidro excepto pelos olhos, que eram de osso.

Mas ainda assim o Rei permanecia inquieto.

Um dia, conforme Allah decidiu que haveria de ser, o Defensor da Fé estava num balcão muito acima da cidade, ao meio do dia, e foi-lhe permitido ver toda a cidade espalhada abaixo de si, como uma tapeçaria. Ele viu tapetes a vibrarem pelos céus, mercados a abarrotar de doçarias e especiarias raras, e pássaros habilmente feitos de jóias que cantavam mais docemente que qualquer ave nascida de um ovo.

Ele viu caravanas a atravessar o deserto, rumo à cidade, camelos carregados com sedas, perfumes caros, diamantes e rubis grandes como o punho de um homem, e jovens dançarinas de olhos pintados, a suas faces veladas e os pés tatuados com hena. Viu embarcações a entrarem no porto, cheias de cereais e romãs, e os banhos públicos e as espirais das mesquitas, e ouviu os Muezzin a chamarem os fiéis às orações. E viu os artesãos e marinheiros e mercadores; os guerreiros e os guardas da cidade, e estranhos de todas as nações, que haviam vindo para Bagdad, a jóia das cidades. Incomparável.

Tudo isto ele viu, mas o seu coração estava inquieto. Era o Ramadão, o mais sagrado dos meses, pois foi no Ramadão que o anjo Gabriel primeiro deu a palavra de Allah, o Único, o único Deus, ao Profeta.

A sua esposa, Zubaidah, veio à sua presença.’
continua...

quarta-feira, novembro 08, 2006

Ramadão I (por Neil Gaiman)

‘Em nome de Allah, o Compassivo, o Todo-Misericordioso, eu conto a minha história. Pois não há outro Deus senão Allah, e Maomé é o seu Profeta.

Saiba então que esta é uma história de Bagdad, a Cidade Celestial, a jóia da Arábia, e que isto aconteceu no tempo de Haroun Al Raschid, Rei dos Reis, Príncipe dos Fiéis. Não existia outra corte como a de Haroun Al Raschid. Ele havia juntado à sua volta todos os tipos de grandes homens de todos os cantos do mundo: sábios e alquimistas, geógrafos e geomantes, matemáticos e astrónomos, tradutores e arquivistas, juristas, linguistas, magistrados e escribas.

Na sua corte encontravam-se os melhores professores dos Hebreus (que foram os primeiros dos três povos do Livro), e os mais distintos monges dos pálidos Cristãos (uma gentinha suja que não toma banho e venera o poio seco do seu líder, a quem chamam Papa). E, naturalmente, os maiores estudiosos do Corão, a palavra de Allah como foi revelada ao seu Profeta Maomé, cento e oitenta anos antes.

E assim, era o seu palácio o palácio da Sabedoria.

Existiam mulheres no seu harém: concubinas de todas as terras, infiéis e fiéis, com peles brancas como a areia do deserto, castanhas como as montanhas vistas ao anoitecer, amarelas como fumo e pretas como obsidiana, todas elas adeptas da arte do prazer. E também muitos belos rapazes de queixos ainda imberbes, e olhos negros devassos e luxuriantes, saborosos como damasco arrancado durante o orvalho.

E assim, era o seu palácio o palácio do Prazer.

Havia também mágicos no palácio: astrólogos que podiam interpretar a vontade de Allah a partir das danças celestiais das estrelas distantes, encantadores da China e das terras mongóis, com altos chapéus de pelo e longas mangas cheias de segredos, feiticeiros beduínos ascéticos que conheciam os segredos dos anjos e dos djinn e dos homens, poetas e músicos, e homens de apurada percepção e gosto perfeito.

E encontravam-se estranhos assombros na corte: homens com cabeças de animais, animais que falavam como homens, e maravilhosos prodígios mecânicos que fingiam ter vida, cantavam ou moviam-se quanto lhes dirigiam a palavra.

E assim, era o seu palácio o palácio das Maravilhas.’
continua...

terça-feira, novembro 07, 2006

O porquê das coisas: Tacto


O Ramadão, também chamado de quarto pilar do Islão, foi estabelecido em 638 d.C. como sendo o nono mês do ano. Inicia-se, dependendo do local, entre os dias 23 e 25 de Setembro, durando até 22 ou 23 de Outubro. É considerado o mais venerado, abençoado, e espiritualmente benéfico mês do calendário islâmico.

Durante todo o mês, e de acordo com as palavras de Deus, todo o adepto do Islão adulto e capaz deverá observar um rigoroso jejum durante o dia, a iniciar com o avistamento da lua nova (para atingir um estado de consciência mais próximo do Divino), mas também são igualmente importantes a caridade, as orações, e a meditação. Desde a alvorada até ao anoitecer, são proibidas a bebida, comida, tabaco, e relações sexuais, mas também é incentivada a obediência aos preceitos da fé islâmica, através da contenção da ira, inveja, ganância, luxúria, respostas sarcásticas, traição e boatos. Deve ser evitado tudo o que possa representar obscenidade ou heresia, mantendo a pureza dos pensamentos e acções.

A história “Ramadan” de Neil Gaiman foi publicada pela primeira vez em Junho de 1993, e imediatamente alcançou um tremendo sucesso entre crítica e leitores, tendo vendido mais de 250.000 cópias, um feito inédito para a série “Sandman” até à data. Ainda hoje é considerada como a favorita por muitos fãs. A história, soberbamente ilustrada pela pena elegante de P. Craig Russell, é contada numa perfeita tradição árabe, e gira à volta do dilema de um califa de Bagdad que acredita-se realmente ter existido: Haroun Al-Raschid.

Desde que comecei os posts “O porquê das coisas” que tive intenção de colocar uma adaptação escrita de uma história do Sandman, mas foi difícil seleccionar aquela que melhor se encaixaria na transposição de um media que mistura texto e arte na narração de uma história, para outro que apenas envolve texto e a imaginação do leitor. A história “Ramadan” é uma das minhas favoritas (embora o “Dream of a Thousand Cats” seja aquela que mais acarinho), e tem a particularidade de ter nascido como um conto.

Para melhor alcançar o estilo arábico de contar histórias, na tradição da “Mil e Uma Noites”, Neil Gaiman optou, em “Ramadan”, por começar o argumento em texto corrido na forma de um conto, planeando posteriormente dividi-lo em painéis, páginas, e balões de diálogo. Felizmente, num daqueles acasos do destino, algum tempo mais tarde telefonou ao artista que iria ilustrar a história para lhe dar os contornos gerais do trabalho. P. Craig Russell pediu para ver o que ele tinha escrito até à data, ao que Neil Gaiman acedeu (dizem que é uma pessoa extraordinariamente gentil), e imediatamente após ler o texto implorou-lhe que não alterasse nada, deixando-o ilustrar a história à sua vontade.

O resultado é uma poderosa combinação de texto visualmente poético, com uma sublime interpretação artística a nível dos desenhos e cores, e a maneira como a história foi construída facilita bastante a adaptação para o formato de conto. Aliás, trata-se mais de uma tradução literal do que propriamente uma adaptação, uma vez que só deixei que a minha fraca veia literária interviesse quando era necessário descrever alguns painéis que na BD falam por si, sem necessidade de palavras. Pelo que a história que publicarei a partir de amanhã é uma tradução levemente adaptada de uma história da autoria de Neil Gaiman, e quando o texto vos parecer mais fraquinho será decerto nas partes onde a minha pena deixou a sua marca.

A tradução foi mais demorada do que previa, e ao mesmo tempo a minha vida entrou numa espiral de stress, pelo que o blog esteve uns tempos semi-abandonado, mas tudo isto terminou, e podem contar com textos meus em breve. Uma vez que o texto completo de “Ramadan” tem mais de 18 páginas, optei por dividi-lo em partes, que publicarei ao longo desta semana. Desta forma não canso os meus pacientes leitores e leitoras. Se porventura houver alguém mais curioso e que prefira ler tudo de uma vez, vou colocar online um ficheiro PDF com o texto completo e algumas ilustrações de P. Craig Russell, para que possam apreciar a beleza do traço deste senhor.

Para terminar, volto a referir que a história que se segue não é da minha autoria, mas sim de Neil Gaiman, reservando-se todos os direitos de autor. Se a empresa detentora dos direitos de publicação do “Sandman” (em Portugal julgo ser a Devir) não pretender ver este texto publicado, basta entrar em contacto comigo através do mail do Blog, e imediatamente retirarei os posts. Se quiserem ler o original, basta efectuarem a compra aqui.

E agora, sem mais delongas, apresento-vos “Ramadan”. Espero que gostem.
Boa noite, e bons sonhos.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Vox Populi


“Para que o mal triunfe, basta que as pessoas de bem não façam nada”
Edmund Burke

Ponderei durante algum tempo a colocação deste post. Não por receio de represálias, ou comentários inflamados, mas por achar que o mesmo seria estranho ao conteúdo do blog. Afinal, que lugar tem um post a publicitar uma acção de cariz humanitário num blog essencialmente literário?

Muito. Porque somos seres humanos conscientes e compassivos acima de tudo, sendo essas características (entre outras) o que nos define como tal, e porque lutar contra as injustiças do mundo não mais é do que sonhar. Ainda que sejam lutas contra moinhos de vento, mesmo que nada advenha das nossas acções, é necessário erguer a voz humana que trazemos dentro de nós e clamar por todos os sonhos que nos embalam o pensamento, e dão asas à alma.

Foi publicada uma
petição online contra a participação da “estilista” Fátima Lopes em eventos futuros do Portugal Fashion, a mesma Fátima Lopes que utiliza peles de animais verdadeiros nas suas colecções de luxo, e que defende publicamente as suas opiniões. A petição já tem cerca de 900 assinaturas, mas são necessárias muitas mais para que possamos chamar a atenção da organização que a promove (ANJE) e o seu presidente. Mais vozes para que o grito silencioso dos milhares de animais que estão neste momento a passar por sofrimentos atrozes seja ouvido pelos poderes instituídos, pela comunicação social, pela sociedade.

A petição tem recebido um apoio incondicional por parte de muitas pessoas, e já operou algumas revoluções na mente de outras que desconheciam esta situação. São estas pequenas vitórias contra os gigantescos moinhos de vento que despertam a crença no sonho de um futuro melhor, e só por isso, já valeu a pena.

Não lhe peço que assine, apenas que leia o texto. Se concordar, apoie e divulgue a mensagem. A petição não tem qualquer valor legal, e será certamente contestada pelos destinatários da mesma, mas é uma luta que tem de ser travada. Há que mostrar a voz da indignação, para que se saiba que estes actos não passam impunes, ficam registados, não são esquecidos. Há que alimentar o sonho, até que deixe de o ser.

http://www.PetitionOnline.com/ftmlopes/petition.html
Boa noite, e bons sonhos. (Amanhã: Ramadão)