terça-feira, setembro 12, 2006

Cinefilias III (Superman Returns)


Terá sido por volta do ano de 1984, 1985, numa era em que só existiam dois canais de televisão, a emissão real começava às seis da tarde (antes disso era a seca da tele-escola), a televisão por cabo era uma miragem, e só passava uma novela, brasileira, por dia. Estava sentado na cozinha, que também era a sala da casa da minha avó (para onde tínhamos ido morar recentemente), e começou o filme do Super-homem, numa estreia inédita na televisão. Lembro-me primeiro do espanto de um filme tão fantasticamente maravilhoso estar a passar na RTP 1, algo fora do normal para o que se exibia na época, e depois da sensação de surpresa, do inesperado. Como quando recebemos um presente com o qual não estamos a contar.

(Também senti o mesmo quando estava a sair do ciclo e vi o início do King Kong (aquele que inspirou Peter Jackson) pela janela de uma casa. Mas isso é outra história.)

Infelizmente, a televisão lá de casa era uma arcaica Phillips a preto e branco (a chamada televisão de guerra, feita para durar), e não podia ser, não, um filme deste calibre tinha que ser desfrutado a cores em ecrã gigante. Julgo que demorei cerca de 10 segundos a chegar ao café principal da vila, o Coelho (tinha outro nome mas, como tantos estabelecimentos de vila do interior, era conhecido pelo apelido do dono), um lugar semi-decrépito, com uma decoração característica dos anos 70, frequentado pela nata de bebedolas do local. E com televisão a cores, claro.

O Coelho estava dividido em duas salas grandes (restaurante e bar) separadas por uma parede, e com um balcão ao fundo, de madeira velha e a cheirar a bagaço, com bancos redondos esfolados que giravam. Naquela noite a área do bar estava deserta, com cadeiras espalhadas ao abandono como testamento às multidões que por ali tinham abancado durante o dia. Ao fundo, no balcão, ainda resistiam umas poucas pessoas, em conversa ruidosa. Tinha um cheiro característico, uma mistura de tabaco queimado e Macieira, e o chão de azulejos já tinha visto melhores dias. No tecto rodavam umas ventoinhas, preguiçosas e perigosamente oscilantes, que me provocavam calafrios quando lhes sentia o abanar próximo do cachaço. Puxei uma cadeira para longe das pás giratórias, apoiei os cotovelos numa das mesas, estiquei o queixo para cima pois a televisão estava apoiada numa prateleira mesmo ao cimo da parede, e perdi-me. Já não estava no Coelho, os bêbados reduziram-se a um murmúrio longínquo, entrei em Metrópolis a voar por entre os prédios.

Curiosamente, o Super-homem nunca foi o meu herói favorito. Antes mesmo de aprender a ler já as minhas irmãs me compravam as revistas do Homem Aranha, numa papelaria da Rua Direita em Viseu (que ainda existe, mas é livraria, agora), e quando chegou a altura de vestir um pijama colorido e sair para o largo de oliveiras à beira da nossa casa, era o aracnídeo que encarnava. Ai, as doces recordações da infância… o riso histérico das vizinhas nas janelas quando viram as minhas piruetas no empedrado, o baloiçar precário nos ramos…

Mas há qualquer coisa naquele super-herói que apela ao divino que há em nós. Não é a invulnerabilidade, não é a super força, ou a visão de calor e de raios x, nem mesmo a nobreza da personagem. É a capacidade de voar por entre as nuvens, mais rápido que uma bala. Foi o que me cativou desde cedo, e aquilo que me prendeu durante as duas horas (?) do filme, mesmo levando em conta os fracos efeitos especiais. Voar. Já deixei de sonhar que voava há alguns anos, mas a cada encosto na almofada sinto uma prece silenciosa cá dentro, a pedir “mais uma vez, só uma vez, por favor”. É a expressão de liberdade absoluta. Voar.

Quando fui ver este novo Super-homem, levava muitas expectativas na bagagem, mas também uma boa dose de reserva. Sabia que tecnicamente o filme seria fantástico, e pela primeira vez podemos ver o homem de aço realmente a voar, mas também sabia que nada poderia quebrar o primeiro encanto. O filme tem sequências repletas de espectacularidade (a cena do avião em queda é fantástica), mas uma história fraca, com actores e actrizes mal escolhidos, deixa muito a desejar.

Brandon Routh está bem escolhido pelas semelhanças físicas com Christopher Reeve, mas nunca consegue impor-se perante tamanho legado. O que não é de espantar, uma vez que se trata do seu primeiro papel, e nota-se bem o desconforto do actor em certas cenas que exigem um pouco mais de expressão dramática. Não percebi muito bem se estava a tentar colar-se aos trejeitos de Reeve, ou a prestar-lhe uma singela homenagem pelas mãos do realizador, mas o resultado final nem sempre é o melhor. E sofre de um dos problemas que afectam outro actor importante para a trama, que é o de ser demasiado jovem para o papel. Senão vejamos: neste filme, que supostamente é a continuação de Superman II (o III e o IV são ignorados, o que é uma bênção, pois foram o claro declínio da série), o Super-homem volta à terra depois de cinco anos passados no espaço, em busca do seu planeta natal, ou o que restou dele. Não se compreende que, passados cinco anos, o Super-homem apresente o aspecto de um homem a entrar na idade adulta. O engraçado é que, na minha opinião, Christopher Reeve tinha um ar demasiado adulto para quem saiu da quinta dos pais e procurou o primeiro emprego na cidade. São incongruências que facilmente perdoamos, e acredito que nos filmes seguintes Brandon Routh esteja mais amadurecido, fisicamente e como actor, e aí sim, tenhamos um Super-homem adequado.

A personagem de Lois Lane, Kate Bosworth, também é escandalosamente jovem para um papel de uma mulher que, para além de ser mãe de um miúdo com cinco anos, ainda teve tempo de ganhar um Pullitzer. Não compreendo a escolha, aquele papel precisava de alguém mais velho, com um ar mais profissional com aspecto de jornalista. A menina parece que saiu directamente de uma série para adolescentes, e quando tenta mostrar a sua personalidade forte e teimosa perante o editor do jornal (Frank Langella num Perry White apagado e burocrático), mais parece uma rapariguinha birrenta e mimada. Por outro lado, Kevin Spacey apresenta-se razoavelmente competente, e ofusca até certo ponto o Lex Luthor original (Gene Hackman), mas também não resiste a um certo histerismo de vilão maquiavélico.

A história não está mal de todo, mas tem muitos buracos, sendo que o maior deles reside justamente no plágio descarado que fizeram ao argumento do primeiro filme. Valha-me São Eustácio e todos os deuses do Vale do Nilo, com tantas histórias boas por aí, publicadas em milhares de revistas, não conseguiram fazer nada melhor do que ir buscar exactamente as mesmas ideias fulcrais e conceito do filme original de 1977? Mais uma vez temos um Lex Luthor obcecado com a criação de propriedade imobiliária (e destruição da propriedade já existente como consequência), mais uma vez temos um herói subjugado pela kriptonite, mais uma vez uma comparsa do vilão que lhe estraga os planos. Aliás, todo o plano maquiavélico de Luthor é risível, o que nos leva a outro assunto, igualmente pertinente.

Os super heróis representam os nossos ideais, as nossas aspirações enquanto seres humanos fracos, falíveis, e pouco nobres. Tanto quanto os deuses da antiguidade representavam o ideal de perfeição em forma de entidades superiores que governavam por vezes caprichosamente o destino dos pobres e indefesos mortais. O Super-homem, por aquilo que é e pelo que representa aos nossos sonhos, é o deus dos tempos modernos que paira acima de nós e ouve os nossos apelos e súplicas (preces?), pronto a intervir quando necessário. Esta imagem está bem patente na cena em que ele paira na atmosfera terrestre, de braços abertos em cruz (um pouco óbvio, sr. Singer, duh!), a ouvir todas as vozes da humanidade, a descer à terra para nos salvar. É um conceito bonito, e reveste o personagem de uma monumentalidade e dignidade que os filmes anteriores não tinham. O Super-homem merece essa monumentalidade, porque realmente é um deus, é o resultado da nossa vontade de alcançar uma certa noção de divino, de ultrapassar as misérias e fraquezas humanas.

Sucede que, na altura da sua criação e em anos subsequentes, o mundo era um local bastante mais simples. Na linear divisão de poder entre duas potências congregava-se uma igual divisão, a preto e branco, entre o bem e o mal (nós éramos o bem – a civilização ocidental –, e eles os maus, os comunistas devoradores de crianças que não permitiam ao seu povo viver em liberdade). Um personagem tão nobre, tão empenhado na defesa dos ideais do bem e da justiça, encaixava na perfeição nesta visão maniqueísta do mundo, mas entretanto o mundo mudou, e nada é a preto e branco. Todos os conceitos e ideologias se equilibram numa camada infinita de cinzentos, e os ódios e violências atingiram proporções inimagináveis. Existe lugar para um Super-homem num mundo destes? Ou melhor, será que ele pode fazer alguma coisa, terão as suas simples acções algum significado perante o desfile de horrores que nos servem diariamente pela televisão?

Este conceito está a ser, ainda de uma forma algo inepta, abordado pelas revistas de super heróis da actualidade, e era algo que gostava de ver trazido para o ecrã dos cinemas. Gostava de ver um herói esmagado pela maldade do mundo, a salvar uma pessoa de um incêndio com a plena noção que não estava a conseguir impedir o massacre de inocentes em qualquer outro ponto do outro lado do globo.

E aqui, penso que o filme perde a aura de fascínio, porque os maus estão bem definidos, e têm algum plano estúpido que vai provocar a morte de milhões, mas são tão ineptos nas suas acções, tão ridículos nas suas aspirações, que empalidecem frente a qualquer bombista suicida anónimo que se desfaz em bocados e leva dezenas com ele. O mundo do filme não é o mundo em que vivemos, e naturalmente que nunca poderia ser (com homens voadores e essas coisas e tal), mas podia ser um reflexo mais próximo do nosso mundo. Podia ter dilemas morais, consequências, culpa, morte e dor. E só tem fogo de artificio extremamente bem feito e umas poucas ideias coloridas daquilo que gostávamos que o mundo fosse. Embora nunca possa ser.

Para terminar, mais uns buracos que revelam alguma cegueira do realizador: o fato do Super-homem resiste a munições de calibre anti-tanque, mas não consegue manter a integridade perante uma pedra afiada de kriptonite. O caracol na testa do Super-homem dá-lhe um aspecto de cantor pimba (eu sei, eu sei, o Reeve também tinha, tal e qual como nas revistas, mas actualizem-se, pelamordedeus). O herói consegue erguer um continente do oceano e enviá-lo para o espaço profundo, aparentemente desconhecedor da capacidade de resistência e tensão dos materiais (tentem levantar o carro pelo pára choques e vão perceber: parte-se o plástico, o carro não se mexe).

São opções destas, que demonstram algum desrespeito pela personagem (que merecia uma história melhor, e com mais lógica) e pelo público (que pelos vistos não tem discernimento suficiente para notar estas coisas), que me deixam com um sentimento agridoce; o filme é bom nos momentos bons (como quando vemos Clark Kent a observar Lois Lane, através da visão de raios x, a subir pelo elevador, ou mesmo nos flashbacks da adolescência do herói), e péssimo nos maus (Lois Lane é tão burra que, perante a iminência de um desastre aéreo, faz o mais óbvio, que é soltar o cinto de segurança e andar aos tombos pelo avião). Bryan Singer abandonou o franchise dos X-Men para este projecto, mas deixou-se levar demasiado pela aura de génio que acredita ter, e preferiu desenvolver ideias gastas com um toque novo aqui e ali, e um clima de romance meloso inadequado. Não gosto de ver um Super-homem atormentado pelo romance da sua amada com outro homem, tal e qual um adolescente imberbe. Preferia ver um homem com poderes extraordinários a tentar o impossível: salvar a humanidade de si mesma.

Ainda assim, o filme vale a pena ser visto. Não consegue ultrapassar o original, com o saudoso Christopher Reeve apoiado nos arames a fingir que voava a alta velocidade, mesmo que a capa apenas sacudisse ligeiramente, e se notasse a discrepância de iluminação entre o fundo e o herói. Esse senhor, pelo papel que imortalizou, e por tudo o que conseguiu ultrapassar na sua vida, vai ser sempre o verdadeiro Super-homem. Até o miúdo embasbacado no Coelho sabia isso, quando o filme terminou e voltou para casa, a sonhar acordado que voava por entre as nuvens.
Precisa de uma segunda opinião?

sexta-feira, setembro 01, 2006

Problemas de Expressão (Ridículas II)




It’s like I just woke up one morning
Looked out the way that we live
For things could be so much better
They must be better than this





A noite caiu em silêncio, e assobia no ar um sopro frio que convida ao recolhimento. Estive durante algum tempo na varanda a observar as pessoas apressadas, em direcção às suas casas, vindas de qualquer lugar, e agora estou aqui sentado. Mais uma vez em frente a uma folha branca feita de zeros e uns virtuais, a tentar traduzir o inconsciente, o que não se pode relatar em palavras. A ordenar pensamentos e a procurar que alguma ideia coerente escorra da mente confusa para a ponta dos dedos que febrilmente bailam sobre o teclado.

O momento mais difícil é sempre este: começar. Cada vez que revolvo os cantos dos sentimentos, para encontrar qualquer coisa que valha a pena dizer-te, deparo-me com uma barreira quase intransponível, que é a tradução daquilo que trago no peito de uma forma que possas compreender. Sei que houve alturas em que me entendeste bem demais, em que leste todos os textos e poemas que trago guardados mas não revelo a ninguém, mas também momentos existiram em que senti que não conseguias alcançar para além da superfície, que alguma noção ou ideia te toldava os pensamentos e desviava o entendimento para zonas mortas, onde existia um reflexo daquilo que eu demonstrava, mas que não era aquilo que eu era.

No leitor de cd’s os Clã debitam langorosamente os seus problemas de expressão, e acendo um cigarro, de sabor fumarento. Por instantes perco-me a observar o revolutear sinuoso do fumo cinzento, esguio e ágil como um ser vivo, sensual como uma bailarina do ventre, pleno de contorções e reviravoltas, que, como tudo no mundo, também podem servir de metáfora para a vida, e, em ultima análise, para o amor. As palavras custam a sair, e por vezes digo o contrário do que estou a sentir, mas também não é todos os dias que se vive um grande amor, e certamente não é todos os dias que se perde um grande amor, pelo que alguma reserva uma pessoa deve ter antes de condenar e procurar os inevitáveis porquês do fim, que ultimamente parecem andar sempre rodeados de culpas e mágoas.

Não tenho bem a certeza do que vai sair de mim, com esta carta. Aliás, nunca soube que pedaços entregava, a cada texto que te escrevia, e esta não vai ser excepção, pelo que te peço alguma paciência. Algures vais encontrar uma noção basilar, e é à volta dessa ideia central que gravitam todas as palavras que te escrevo, sozinho no quarto com musicas tristes e uma cerveja meio bebida, sem mágoa nem pudor. Quero que saibas, no entanto, que se desconheço o que esta carta vai ser, tenho ao menos uma ideia clara do que não vai ser: não é um pedido de desculpas, não é um pedido de retorno, não é para te “iludir” para mais um encontro, não é para te deixar triste, não é para dizer que te amo ou odeio, nem sequer para descarregar lamentos ou frustrações. Se tiveres paciência e alguma curiosidade para leres o que te quero dizer, permite-me que pegue a tua mão, e te leve para os próximos parágrafos; se não queres mais olhar para dentro de mim, então tens toda a liberdade de saltar até ao último parágrafo, onde certamente te darei um beijo imaginativo e original de boas noites, com votos sinceros de felicidade.

Não é fácil, sei bem, e percebo que exista muita mágoa, e palavras que ficaram por dizer – talvez até sentimentos que ficaram por revelar – na nossa história. Acredito que o amor é, por si mesmo, uma expressão de algo mais grandioso que nos ultrapassa, uma força natural que atrai e repudia, e tanto nos leva aos píncaros como nos rebaixa aos insondáveis abismos. É preciso esforço, muito esforço, para que o encaixe que parece tão natural ao princípio se prolongue para aquele acomodamento gentil e doce, que afinal não mais é do que um amor intenso vivido de forma gradual e calma.

Há muitas concessões e exigências nisto de amar alguém, e sei que alturas existiram em que dei a entender que não estava disposto a abdicar de nada, que não mais eras na minha vida do que uma nota de rodapé, uma anotação à margem das páginas. Sei que tenho a vida demasiado preenchida, e momentos houve em que abdiquei de estar contigo para poder responder a mais algum compromisso, e não posso pedir desculpa por isso, porque… bem vês, é assim mesmo que a vida é, não há nada que possamos fazer. Tu sempre foste a melodia central da minha vida, aquele pulsar ao fundo que marca o ritmo de tudo, mas no meio da canção sempre existiram notas que se introduziram à traição, e que distorciam um pouco o tempus da composição. Ao fundo, era sempre a tua canção que estava a tocar, era sempre a tua música que eu ouvia.

Porque sempre foste o meu porto de abrigo, aquele farol imutável que permanece sólido e afronta todas as tempestades, constantemente a alumiar o meu caminho. Por mais voltas e reviravoltas que a minha vida desse, por mais locais onde fosse e pessoas conhecesse, tu estavas sempre ao fundo da viagem, e mesmo indo na direcção contrária, era para ti que eu ia. Para ti, mais ninguém.

Não quero com isto dizer que te considerava “sempre ali”, eternamente disponível, viesse eu de onde viesse. Não. Quero dizer que podia sempre contar contigo, e não importa quão louca e movimentada fosse a minha vida, não interessava em que turbilhões da cidade e do pensamento me perdesse. Sabia que estavas lá, e sempre ia encontrar a paz no teu regaço, o descanso nos teus braços, a doçura nos teus seios.

O que é o amor, afinal?, o que significa na verdade amar alguém, senão encontrar nessa pessoa aquele refúgio onde podemos ser nós próprios, sem máscaras e sem mágoas, onde podemos sentir que amar é tão simples, tão fácil, tão verdadeiro, que nunca poderia ser de outra forma? Nunca precisei de me esforçar para te amar, e mesmo quando discutíamos, ou te zangavas comigo, eu sabia que eras tu, só podias ser tu. Contigo era simples, não havia lugar para lógicas complicadas, para equações de paixão, raízes quadradas de desejo, ou algoritmos de sentimentos. Estava implícito, e só isso é mais do que podemos esperar de uma vida regida por cálculos que contornam os sentimentos.

Nunca procurei em outros braços aquilo que os teus braços me davam porque não precisava, tu eras a fonte que matava todas as minhas sedes, mesmo que esta frase seja um terrível lugar comum e deva ser evitada a todo o custo. E se te pareci distante, alheio até, é porque não sentia necessidade de deconstruir o que me passava pelo peito, pois sabia que estavas ali para me receber, que aquilo que sentias era tão incondicional como o que sentia. Nem me apercebi que te afastava, que algures no teu íntimo uma outra compreensão se instalava. Parecia-te desinteressado? Dei-te a sensação que não tinhas a importância que devias ter? Fiz-te sentir menos especial do que aquilo que és, e mereces sentir? Não era a minha intenção, e só não te peço desculpa agora porque silenciosamente, ao longo destes tempos, já a pedi muitas vezes.

Sei que a vida tomou um rumo que talvez te leve para longe de mim. Sei que outros pensamentos te ocupam o espírito, e talvez não me dediques, no coração, mais que um fugaz aceno de lembrança, e está tudo bem, acredita. Um amor incondicional exige entrega e abnegação, e eu quero que sejas feliz, mesmo que a tua felicidade passe fora do meu, do nosso caminho. Da mesma forma que sei que mereces ser feliz, também sei que fomos felizes, mesmo no meio da amargura e das discussões. Porque a vida e o amor têm que ter atrito para conjurar calor. Todos temos que ter momentos menos bons para que os momentos felizes sejam realmente felizes. É assim que eu vejo a nossa história, e sei que foi uma história bonita, de amor profundo, altos e baixos, risos e lágrimas, beijos e olhares duros, mas não seria profundo se não tivesse existido nada disso. E talvez já não te amasse, se nada disto tivesse acontecido.

Não te vou esquecer, porque não se esquece alguém como tu, e se tens que ser feliz seguindo o teu próprio caminho, sozinha ou sem mim, então estou mais que disposto a recolher-me silenciosamente para o lado e deixar-te passar, lançar-te um olhar prolongado e deixar que este amor me leve para outro local, para onde tenho de ir. Talvez as coisas pudessem ter corrido de outra forma, e talvez estivesse nas minhas mãos o rumo para que tal sucedesse, e eu não soubesse para onde deveria ter ido, ou para onde te deveria ter levado, mas não é altura para recriminações, ou lamentações sobre o que poderia ter sido, mas não foi.

Irão as nossas linhas da vida cruzar-se novamente, como já se entrelaçaram antes? Não sei. Dizem que o amor nunca afasta verdadeiramente ninguém, e mesmo que caminhemos em direcções opostas, nesta terra que querem que acreditemos ser redonda, acabaremos por nos encontrar algures pelo caminho. Talvez nos encontremos livres de tudo o que nos afastou da primeira vez, e possamos olhar um para o outro, redescobrir o que nos trouxe e traz sempre de volta, começar outra vez. Mais maduros, mais seguros, mais vividos, com mais bagagem de alegrias e tristezas, mais prontos para nos aceitarmos.

Não te quero esquecer, não te vou esquecer, e sempre trarei a tua imagem guardada ciosamente e com carinho no coração. Porque há momentos para fugir de nós próprios e de quem amamos, e momentos para acreditarmos que estas certezas só surgem uma vez na vida, não as conseguimos ocultar, afogar em desilusões, asfixiar em ressentimentos. Há amores que sabemos instintivamente que foram únicos, e por terem sido únicos sempre viverão dentro de nós. Esta certeza é algo que vou carregar comigo, enquanto existir, mesmo que te veja ao longe com outra pessoa, mesmo que te olhe nos olhos e desvies o olhar, mesmo que passes por mim, e não digas uma palavra. Sei bem qual é o som da tua voz, e sempre vou conseguir ver o verde dos teus olhos.

Antes que a cortina final encerre este ultimo acto de nós dois, há ainda uma coisa que te quero dizer, e não é nada elaborado ou romântico de uma forma pretensiosa. É apenas uma constatação:

Foste tu. Foste sempre tu, a única certeza da minha vida, aquela que trago desde que te vi pela primeira vez, e que vai permanecer comigo muito tempo depois de teres desaparecido no horizonte.

E é tudo. Desejo-te boa noite, com um beijo prolongado, do tamanho das estrelas que brilham no teu olhar, suave como o toque sedoso da tua pele, e sentido, como todo o amor que nos uniu, que nunca nos vai separar.

24 de Janeiro de 2006 (escrito a pedido)