sexta-feira, julho 21, 2006

Carpe Diem


Até ao próximo dia 29 estarei a viver a vida em modo offline, num belo repouso algarvio. É a primeira vez que passo férias no Algarve, e estou a modos que ansioso por dias de areia escaldante e águas tépidas. Daqui a uma hora farei como os pássaros, que sempre foram mais espertos que qualquer um de nós: rumarei a Sul.

A todos os que por aqui passam (e porque não? a todos os que nunca por aqui passaram, igualmente), desejo uma boa semana, quer estejam a viver os dias calmos, ou no meio das horas asfixiantes de produtividade.

Voltarei renovado, e de escrita renovada. Levo comigo a Sr.ª Patrícia Highsmith e o Sr. Truman Capote, para me fazerem companhia, mas posso também adiantar que terei outra companhia mais palpável e infinitamente mais agradável, pelo que prevejo umas boas férias.

Fiquem bem, e continuem a sonhar. Até logo.

Leituras VII

"- Costuma ler o Record?

- Olho para ele mas não o leio. Os jornais não dizem verdades, só contam factos. Quer discutir essa questão?

- Fica para outra vez - respondeu Ellery, sorrindo. - Mas tenho de confessar que o admiro, Toyfell. Tem aguentado muito bem golpes que teriam deitado abaixo um homem mais fraco. Em pouco tempo, morrem-lhe dois patrões e um amigo, e você continua aqui... a filosofar.

- Conhece-te a ti mesmo - disse Harry Toyfell, ajoelhando novamente [no jardim]. - A alma do homem é imortal e imperecível.

- Você é religioso?

- Foi um pagão que disse isto. Leia Platão. Mas as pessoas já não lêem Platão. Só os jornais. A minha religião é adorar a Deus em cada semente. Na igreja não há nada além de flores cortadas."

Ellery Queen, Cara ou Coroa, Biblioteca Visão Mestres Policiais, Linda a Velha, 2000, páginas 71 e 72.

Lugares de sonho II


(continuando)

Trata-se, portanto, de uma colisão entre a realidade vivida e imaginada com a realidade existente. Digo vivida e imaginada porque nunca os nossos lugares de sonho foram tão perfeitos na altura em que os frequentámos, como quando agora os imaginamos; existe sempre uma cortina de idílio que cobre o véu das recordações, e esconde as arestas mal entalhadas da paisagem; é assim que sei que o recanto debaixo da ponte até era um pouco desconfortável, com todos aqueles mosquitos e moscardos em busca de carne quentinha para aferroarem as suas presas. E a pedra onde estendia a toalha também ficava a dever um pouco ao conforto de um espaço de terra macia coberta de relva.

Mas era o meu lugar de sonho, na medida em que passei lá muitas boas tardes, que agora procuro resgatar da memória.

Assim, como o personagem do romance de Nick Hornby que ansiava por um emprego numa moldura temporal específica, também acredito que há locais que apenas podemos encontrar num determinado tempo: são os nossos lugares de sonho. Já não existem na esfera material da realidade presente, porque dificilmente conseguiremos reunir todas as condições para que os mesmos sentimentos – recordações – sejam sentidos espontaneamente.

O que não deixa de me provocar certa tristeza, pois relembrar momentos felizes do passado significa assumir que nunca mais poderemos existir naquela série de circunstâncias, e estamos voluntariamente a dizer a nós mesmos que aquela felicidade não volta mais. E não volta mesmo. São lugares de sonho porque permanecem apenas nos sonhos, e só os evocamos num determinado tempo, que, como todo o tempo do mundo, correu, correu, gastou-se e passou, sem olhar para trás.

Quem conseguirá ficar totalmente feliz, depois de ter vivido momentos felizes, mesmo que agora esteja a viver outros momentos felizes? A lembrança da felicidade passada não trará apenas um certo amargo aos dias presentes? Poderemos verdadeiramente congratularmo-nos por uma infância alegre, despreocupada, se o próprio facto de a estarmos a recordar significa que – melancolicamente falando – nunca mais os dias serão assim tão inconsequentes? Porque será que fico triste quando me lembro de quão pouco triste era?

Arquivamos essas memórias como livros na prateleira, que servem como reconforto de uma vida plena mas também como monumento à perenidade das coisas: tudo acaba, tudo chega ao seu termo, nada volta ao que era. Tentar resgatar isso apenas introduz um elemento de anormalidade na vida, porque não podemos regredir no tempo, e já não somos as mesmas pessoas que viveram aqueles momentos. Crescemos, evoluímos, e como cobras que despem a pele que já não lhes serve, como uma meia velha, também nós temos que descartar certas vivências, e atirá-las para um poço de lembranças.

Estes três dias que passei em Viseu serão, no futuro, um lugar de sonho: Viseu, entre 14 e 16 de Julho de 2006. Foi um tempo e um local onde me entreguei por completo à despreocupada felicidade, mesmo tendo alguns maus augúrios a ensombrarem-me o céu sem nuvens. Foram dias de jantar na esplanada de um restaurante na zona antiga da Sé, ao som de um concerto ao vivo dos Fingertips a vinte metros das mesas, depois de uma tarde quente dividida entre o repouso na relva fofa e o mergulhar na água fresca. Foram fins de tarde carinhosos com alguém que muito amo na varanda de casa, por entre goles de cerveja e festas ao gato que ofereci à minha sobrinha, ao som da mais acertada escolha de músicas da RFM que já presenciei.

E foram também os dias da desilusão do encontro com o monstro de cimento que o rio debaixo da ponte se tornou, mas também dias mágicos de descoberta da ponte romana, mais adiante, que conduz a outra enseada verdejante, igualmente bela.

São assim os meus lugares de sonho. Existem apenas geográfica e temporalmente precisos em momentos que não se repetem, mas que melhoram com o passar dos anos. Pertencem ao mapa e ao calendário, o que os torna ainda mais distantes daquilo que sou agora. Posso esquecê-los, eventualmente, mas não são esquecidos. Evoluem, como eu.

Este post também evoluiu para direcções diferentes daquelas que eu imaginava levá-lo. Queria que tivesse saído um pouco mais poético, porque era esse o meu estado de espírito quando me decidi a escrevê-lo, e espero bem que me sirva de lição: nunca adiar a escrita quando ela quer ser escrita. Serve no entanto de aviso à navegação, pois amanhã por esta hora estarei a rumar para um lugar de sonho (Vila Real de Santo António, entre 22 e 28 de Julho de 2006), o que significa que privarei os meus três ou quatro leitores e leitoras do aborrecimento de lerem monólogos fastidiosos e intermináveis durante alguns breves dias :).

Até lá, boa noite, e bons sonhos.

segunda-feira, julho 17, 2006

Lugares de sonho I



No livro “Alta Fidelidade” de Nick Hornby, a dada altura vemos o personagem principal a tentar elaborar uma lista com os seus cinco empregos de sonho. O primeiro é, se a memória não me falha, ser jornalista da Rolling Stone entre 1972 e 1977 (os anos podem ser diferentes, não me apetece ir vasculhar os livros acumulados para conferir).

Cheguei hoje de uma viagem de três dias com a namorada (chuac!), da mui nobre e bela cidade de Viseu, pátria dos meus segundos passos da infância, que costumo visitar com alguma frequência, pois toda a família é de lá, e penso que poderemos aplicar um raciocínio similar aos nossos lugares de sonho.

Que todos temos, julgo. – Seja uma praia onde se passaram férias fantásticas, seja um local que se partilhou com alguém especial, seja o restaurante onde fomos pedidos (as) em casamento, ou aldeia onde crescemos, e até mesmo o chaparro debaixo do qual perdemos a virgindade. – Ou que, pelo menos tenho eu, e como tal os identifico. Embora não tenha perdido a virgindade debaixo de um chaparro (nem em cima, já agora).

O mal dos locais de sonho é a erosão do tempo. Não estou a falar da memória que eventualmente se desvanece, ou encapsula as recordações distantes numa forma de idílio celestial. Refiro-me ao desgaste físico, ou mesmo à destruição por mão humana. É assim que a praia que foi palco de um romance inesquecível, marcada por horas de namoro debaixo do pôr do sol, pode apresentar-se-nos, viajantes sedentos em busca do resgate de memórias saudosas, coberta de gaivotas histéricas, fruto da instalação recente de canos fétidos que desembocam na linha de água. E é uma desilusão.

Já passei por esse sentimento de perda demasiadas vezes; havia uma passagem na estrada velha que ligava Viseu a Vila Nova de Paiva, logo após uma curva ampla que concluía uma recta tão côncava como as dobras na virilha de uma mulher, que sempre considerei mágica: as árvores em volta da estrada quase que pareciam estar a dobrar-se, a quererem tocar-se através do espaço vazio, e formavam um longo túnel de verde frondoso que criava padrões de luz surreais nos dias solarengos. Foi com um constante pasmo de beleza, reverente respeito, que passei ali vezes sem conta, e foi com uma dor física no peito que verifiquei, há alguns anos, que um incêndio elevado a catástrofe reduzira aquele túnel, que nos abraçava com folhas, a uns poucos cotos enegrecidos nas margens do alcatrão. Ainda me dói quando lá passo, felizmente que construíram uma estrada alternativa.

Nessa mesma estrada (deverão já ter percebido que a própria estrada é para mim um local de sonho), quilómetros antes, há uma passagem que cruza com o rio Vouga, em forma de ponte em arco. A ponte eleva-se a uma altura respeitável sobre um desfiladeiro fundo, onde o rio cava, lá em baixo, o seu infindável caminho. Esse ponto do rio, há cerca de vinte, trinta anos, era bastante concorrido, e recordo-me de tardes alegres nas enseadas que então existiam, passadas com a família. Ainda sinto o cheiro do churrasco preparado ao ar livre, da fome de uma manhã passada a chapinhar atrás dos peixes.

Vieram entretanto as vias rápidas para o mar, as agências de viagens com pacotes turísticos pagos a prestações, a moda de ir para fora lá fora, e o local foi sendo progressivamente abandonado, deixado ao crescimento desenfreado das silvas e giestas. Só uns poucos resistentes voltavam ano após ano, e acreditem, havia bons motivos para isso: mesmo debaixo da ponte formava-se um pequeno açude convertido em piscina natural, que terminava numa escorregadia cachoeira que, por sua vez, era ladeada por enormes pedras que pareciam estar sempre em equilíbrio precário, e onde meia dúzia de banhistas estendiam as toalhas e se refastelavam como lagartos ao sol.

Admirava a beleza simples do local, a harmonia entre a cascata construída há décadas por mãos humanas e a beleza da natureza envolvente, que se tinha inteligentemente adaptado a uma arquitectura antiga feita de pedras empilhadas unidas com cimento grosso. Todas as casas das aldeias parecem habitar a paisagem como se tivessem sido feitas pela natureza, e aquela cachoeira dava a sensação de ter sido feita à custa do martelar constante da água, não destoava mais do que os rochedos gigantes. Foi sempre um local de sonho. Até lhe perdoei quando a minha irmã escorregou nas algas – e poderia ter sido muito mais grave – e ficou com um dedo virado ao contrário na mão que usou para se apoiar.

Frequentador assíduo do espaço, verifiquei como, de ano para ano, a minha toalha ia ficando mais sozinha na pedra gigante. Não me importei, e nem me preocupei se o motivo da falta de visitantes estaria de alguma forma relacionado com a qualidade da água. “Óptimo, mais sossego tenho”. E nunca deixei de voltar ao local, com a família, nos dias sufocantes do Verão.

Até há um par de anos, quando algumas mentes brilhantes – diria mesmo iluminadas – consideraram que seria uma excelente ideia encher o local de cimento em pontos estratégicos, desviar o curso da água lateralmente, promover a cascata a barragem à custa de quilos de massa, e, de uma forma geral, deformar completamente a paisagem, que passou de harmonia entre rochas, água e verde, a profusão de cinzento árido e água estagnada.

Porra.
(amanhã continuo)

terça-feira, julho 11, 2006

Leituras VI


"Apontei para a secretária vazia de Miss Fromsett e a loura acenou com a cabeça e carregou numa cavilha. Abriu-se uma porta e Miss Fromsett surgiu com o seu ar altivo, indo sentar-se à secretária, fitando-me com uma expressão fria e interrogativa.

- Faça favor de dizer, Mr. Marlowe. Mr. Kingsley ainda não chegou.

- Estive agora mesmo com ele. Onde podemos conversar os dois?

- Conversar?

- Queria mostrar-lhe uma coisa.

- Ah, sim? - Olhou desconfiada para mim.

Talvez muitos outros homens tivessem tentado atraí-la com coisas para lhe mostrar. Noutra altura qualquer também eu próprio era capaz de tentar a minha sorte."

Raymond Chandler, A Dama do Lago, Biblioteca Visão Mestres Policiais, Linda-a-Velha, 2001, página 100.

Palavras caras


Estive este Domingo na Feira do Livro, no Parque Urbano de Ermesinde, por um feliz acaso. Este tipo de eventos é o meu Toys ’R’ Us dos dias adultos, mas não pelos descontos nos livros novos; esses passam-me ao lado, é mesmo pelos livros em segunda mão. Confesso que me perco quando começo a vaguear pelas mesas de livros amarelados, com capas adoravelmente kitsch, e um vago odor a mofo. Metamorfoseio-me em mulher fanática por compras, na época de saldos. Acredito, inclusive, que os instintos femininos assomem à superfície, pois recuso-me a comprar o que quer que seja antes de ter manuseado tudo o que há para ver (“comprava já isto, mas e se na próxima loja estiver algo que me agrade ainda mais?”)

Duas horas depois estava com um saco em cada mão, razoavelmente cheios, restos de gelado no lábio, e um ar satisfeito de quem acabou de adquirir:

~ Shōgun, James Clavell, Vol. I, Publicações Europa-América, 541 páginas.
~ Shōgun, James Clavell, Vol. II, Publicações Europa-América, 543 páginas.
~ Cara ou Coroa, Ellery Queen, Biblioteca Visão Mestres Policiais, 256 páginas.
~ A Clínica do Terror, Mary Higgins Clark, Biblioteca Visão Mestres Policiais, 272 páginas.
~ A Dama do Lago, Raymond Chandler, Biblioteca Visão Mestres Policiais, 206 páginas.
~ A Sangue Frio, Truman Capote, Biblioteca Visão Mestres Policiais, 320 páginas.

Total: 6 livros, 2138 páginas, 10 euros (na verdade os dois primeiros foram oferecidos - obrigado amor -, mas o preço total está correcto).

À partida, não seria necessário escrever mais nada, uma vez que se a (o) cara (o) leitora (or) – é bom variar hábitos de escrita para o feminino, não acham? – tem paciência para me ler, não lhe serão alheios os preços mercenários da literatura, hoje em dia. Mas vamos penetrar só mais um pouquinho no âmago da questão (adicionei esta expressão fálica para os leitores não pensarem que beneficio apenas as mulheres).

O livro “A Sangue Frio”, de Truman Capote, está actualmente a ser comercializado a um custo de 17,96 € (dados obtidos na Fnac, Edições D. Quixote), e também aqui quaisquer óbvias conclusões tornam-se redundantes. É correcto afirmar que a edição na Fnac tem uma capa bonita, em alusão ao filme recentemente estreado, e fará melhor figura na estante lá de casa do que a edição de capa dura da Visão, que até diz “Colecção Lipton”, com o respectivo logótipo da bebida na contracapa. Mas isto é totalmente irrelevante para quem compra livros para ler (talvez esteja a aplicar o meu molde a todos os bons leitores, mas eu – sei bem – não compro livros para expor na prateleira. Não o faria, sequer, se tivesse uma prateleira).

Por outro lado, quem visita livrarias com alguma frequência, e vai para além das estantes frontais dos tops do momento, sabe decerto que o preço do livro de Truman Capote não estava tão inflacionado, antes da estreia do filme. Não há qualquer censura implícita nesta jogada da editora, afinal, tudo é negócio, e se se podem colocar livros tecnicamente off the immediate market a render mais umas moedas, quais prostitutas desdentadas momentaneamente elevadas à condição de novidade da semana, hey hey hey, more power to you, mighty publisher.

Mas não resisto a dar uma rapidinha na novidade da semana: só mesmo na mente de um bando de mentecaptos gananciosos que ouviram demasiadas teorias de marketing é que um livro com 40 anos de existência poderia ser trazido para a ribalta de preços de primeira edição, depois do relativo sucesso comercial de um filme baseado nesse livro de 40 anos, sendo que a punch line, nesta triste anedota, é que o filme deve a sua existência justamente ao sucesso do livro em questão. Confusa (o)? Já estou a ver os masterminds da editora a salivarem de antecipação perante as notícias da box office, os olhinhos cheios de cifrões, como os desenhos animados de há 40 anos, a imaginarem as dúzias de pacóvios que vão generosamente abrir as carteiras para pagar preços mais elevados por um livro, só porque alguém decidiu, um dia, adaptar a história ao cinema. E na maior parte das vezes nem se dão ao trabalho de disfarçar: é imprimir umas sobrecapas com as trombas do actor que faz o papel do personagem principal, embrulhar nas edições encalhadas em centenas de livrarias, e já está; saldos ao contrário, aproveite antes que façam a sequela. Outras vezes não é preciso encapotar o abuso; basta comparar os preços do Código da Vinci, que cheguei a encontrar a 13 ou 14 euros, depois de esgotada a euforia inicial, e agora já se alavancou a uns respeitáveis 16,16 €, com o lançamento do filme.

Os filmes baseados em livros incentivam a leitura das obras originais? Claro que sim. Os abutres também voam em círculos onde sentem carne fresca, mas isso não é motivo para tentar sacar mais alguns tostões das poucas pessoas cujos hábitos de lazer sustentam essas mesmas editoras. Queixam-se que actualmente se lê pouco? Da minha parte, considero que a invenção das sanitas de assento fez mais pela criação e incentivo de hábitos de leitura do que estas empresas que só sabem contar moedas.

E já sei o que fazer de agora em diante: estar bem atento às notícias sobre cinema, para decidir que livros comprar, antes que alguém decida prostituí-los.

sábado, julho 08, 2006

Cinefilias I (Poseidon)



Na década de 70 o cinema americano era fértil em filmes catástrofe: “A torre do inferno” (incêndio), “Aeroporto” (desastre aéreo), “Terramoto” (abelhas assassinas, obviamente), e muitos outros, tendo “A Aventura do Poseidon” alcançado um certo degrau de sucesso comercial.

Essa fase conheceu o seu inevitável fim, e eis que quase 40 anos depois voltamos à fase do revivalismo, onde parece que os argumentistas ficaram todos sem ideias de jeito, pelo que se entretêm a desempoeirar velhos hits do passado, com uma roupagem ligeiramente modificada, e a apresentá-los com uma panóplia alucinante de efeitos especiais. Também poderia dizer que esta é a fase dos filmes visuais, ou bombásticos, onde qualquer personagem credível, diálogos inteligentes e histórias coerentes, são substituídos por efeitos especiais caríssimos, de arregalar a vista, que visam exclusivamente colmatar todas as falhas referidas (a outra táctica é contratar mulheres com seios enormes – nunca falha).

Felizmente que “Poseidon” não é nada disto (está bem, eu confesso: é). Sim, tem efeitos especiais de cortar a respiração. Sim, os personagens são tão superficiais e caricaturizados quanto os dos livros da Margarida Rebelo Pinto. E sim, a história, apesar de tentar manter alguma pouca coerência, é simplista o quanto baste (pensaram que eu ia escrever q.b. não pensaram, seus hereges?). O filme sofre de todos os defeitos que normalmente caracterizam o consumo de massas preparado especialmente para acéfalos comedores de pipocas, mas, pelo menos, assume totalmente essa vocação comercial, atira-nos para uma montanha russa de emoções e perigos, e manda-nos para fora da sala com a refrescante sensação de que fomos total e obliviamente entretenizados.

Muito rapidamente, a premissa do argumento: Barco gigante de recreio, na noite de passagem do ano novo, é atingido por onda gigante, e fica virado ao contrário. Alguns passageiros recusam-se a esperar pela salvação (uma atitude bastante sensata, pois a cavalaria, em Hollywood, chega sempre tarde demais) e unem esforços para escapar pela única saída possível: a abertura das hélices.

É um pouco forçado, eu sei, mas neste tipo de filmes temos que nos sentar com a “suspensão da credulidade” ligada no nível máximo. E mesmo assim, há algumas passagens que realmente são demasiado inverosímeis (a sequência dos parafusos na grade, por exemplo), mas enfim, tudo é sacrificado em nome de uma boa diversão.

Wolfgang Petersen parece estar a especializar-se em: a) filmes catástrofe (ver “The Perfect Storm” e “Das Boot”) e b) filmes de ambiente náutico (ver “The Perfect Storm” e “Das Boot”), e consegue dirigir a história com segurança e mestria, optando por um ritmo avassaladoramente rápido, intercalado nos momentos certos por pequenas pausas na acção que permitem que nos recostemos para trás, e acalmemos os nervos. E acreditem que nervos é o que o espectador (bem como as personagens) mais vai sentir, seja pelas situações de insuportável aflição em que os personagens se vêem metidos, seja pelo facto de estarem sempre, sempre, sempre, a sair da frigideira para o fogo, em momentos de tensão cumulativamente mais stressantes.

Apreciei algumas opções do argumento que, ao evitar a banal sucessão de clichés de filmes do género, consegue surpreender (ver a cena do Valentin no elevador, e do afogamento de um personagem que em qualquer outro filme, seria intocável). Também gostei de notar que o realizador não se coibiu de nos mostrar todas as pouco higiénicas cenas macabras que um desastre destas dimensões certamente teria, se tivesse realmente acontecido (ao contrário do avião despenhado de Spielberg, no “Guerra dos Mundos”, que concerteza não tinha um único passageiro a bordo).

E depois é o festim visual: começa com a cena inicial, onde apreciamos as tremendas dimensões do navio, num plano de travelling só possível através de efeitos digitais, de belíssimo efeito. O momento do embate da onda também está muito bem concebido, e os cenários do navio, seja antes do desastre (um luxo grandioso), seja depois (um caos grandioso), são de uma perfeição difícil de igualar (reparem no hall principal do navio, antes e depois). Tecnicamente, “Poseidon” está impecável, e nota-se o extremo cuidado posto no projecto, o que só por si serve como garantia da (alguma) qualidade do filme, mesmo sendo pipoqueiro ao extremo. Os actores servem o propósito do argumento, e não se esforçam muito a aprofundar subtilezas: aqui, é sempre a correr, e para a frente, numa cadeia de dificuldades sucessivas, em crescendo. Notam-se aqui e ali alguns clichés, rapidamente engolidos quando o filme começa a acelerar.

Resumindo: para quem procura o significado da vida enquanto entidade intangível da sublimação do real no imaginário, o filme é mais do que apropriado, uma vez que quem tem esse tipo de problemas tende a encontrar respostas no que quer que seja que se lhes apresenta à frente, através de enfatuados processos mentais.

Agora se o que desejam é desligar o cérebro durante cerca de duas horas, mais vale irem ver um filme expressionista alemão, ou impressionista francês, para dormirem um pouco. Neste filme, ninguém dorme, todos nadam.
E correm.

Quer uma segunda opinião?

terça-feira, julho 04, 2006

O sobrevivente


15 minutos atrás. Estou a chegar a casa. Na rua paralela à da minha humilde residência sou bloqueado pelo camião do lixo, e municio-me de paciência, pois já sei, de encontros anteriores, que ainda vou apanhar mais três contentores carregados de dejectos citadinos, antes de chegar ao cruzamento onde posso virar, e afastar-me do mamarracho de ferro. Não tenho hipótese de fuga, a rua é estreita, de paralelos, revestida de carros estacionados de ambos os lados. Mais vale acender um cigarro, e esperar.

Admiro a profissão dos homens do lixo; têm um trabalho duro, odorífero, e deve dificultar sobremaneira os engates, depois de lhes perguntarem o que fazem. São úteis, e condenados à incompreensão social.

Um dos contentores está mais cheio do que o normal, provavelmente alguma empresa que despejou o lixo acumulado do fim-de-semana. Observo a azáfama dos homens, entre o distraído e o atento à música na rádio, e reparo que um deles pára por momentos o que está a fazer, para observar o objecto que tem nas mãos: é um livro. Parece antigo, ainda do tempo em que as pessoas mandavam encadernar os livros com capas castanhas e letras a dourado, para aumentar a durabilidade, e desenhar uniformidade nas estantes da sala. Também tem um volume de páginas respeitável. Imagino que tipo de idiota achou que seria boa ideia atirar com um livro para o lixo, e pergunto-me se não haverá mais amontoados de palavras, presas dentro daqueles sacos azuis, inchados. É um pouco triste.

Felizmente, aquele livro em particular recusa-se a resvalar para o esquecimento; não quer morrer uma morte pouco digna por entre os detritos. O homem do lixo, trajado com roupas fluorescentes, folheia por breves segundos as suas páginas, o papel amarelo a deslizar por entre as luvas grossas de cabedal, e encaixa o sobrevivente numa das protuberâncias de metal do camião. Não sei qual o título na capa, nem o que terá ele lido que despertou a sua atenção, mas sei que foram palavras poderosas, palavras que não estavam destinadas a perder-se. Cada vez que disser, de hoje em diante, que não escolhemos os livros, eles é que nos escolhem a nós, vou recordar-me do livro condenado, que se salvou nos últimos instantes. O sobrevivente.

Aquele livro nasceu de um sonho que alguém um dia teve, e dedicou dias e noites a materializar em palavras o que até então era apenas traduzível em imagens, sons, e recordações; foi lido por alguém que decidiu que o conteúdo era bom o suficiente para levar outros a disponibilizarem-se a pagar uma determinada quantia, para conhecer os sonhos do autor; já esteve disposto nos escapatares de uma livraria, a cheirar a novo, com uma capa colorida, e atraiu a atenção dos passantes; foi lido, possivelmente relido, adorado ou odiado, e depois arquivado numa estante, ou num canto de uma secretária; talvez anos mais tarde tenha sido transferido para um sótão, onde acumulou pó durante anos e anos; pode ter sido herdado por algum energúmeno, que não se deu ao trabalho de ler o que continha, e decidiu matá-lo, atirá-lo para o limbo dos livros que já ninguém lê, nunca ninguém lerá. Aquele livro estava destinado a nunca mais ser lido, e compreendam que para um amante de livros, como sou, estas são palavras terríveis, com uma fatalidade de dimensões trágicas. Estou contente por ter sobrevivido, por ter encontrado o caminho de casa.

As palavras nunca morrem.