quarta-feira, junho 28, 2006

O porquê das coisas: Rosto

Sandman, ilustração de Gene Colan (cores invertidas)

“Beyond, outside my Dreamworld there is infinite dust, infinite dark. And the Dreamworld is infinite although it is bounded on every side. The way to the center is a slow spiral. One passes the houses of mystery and secrets... old way stations on the frontiers of nightmare. From there one charts a course nightward until one reaches the Gates of Horn and Ivory. I carved them myself, when the world was younger, and order was needed. I hasten to the Gates.

The dreams that pass through the gates of Ivory are lies, figments and deceptions. The other admits the truth. No one guards the horned gate anymore. I remember the way of old. Once through it I can see my castle. Through it I will be able to see... my home...”

Neil Gaiman, Sandman, Vol. I Preludes & Nocturnes - Imperfect Hosts

O Sandman sempre fez parte do folclore, desde tempos imemoriais, presente em inúmeros contos infantis contados de forma a iludir as crianças para irem para a cama. Tradicionalmente, o Sandman espalha um pouco de areia nos olhos das crianças, para que estas adormeçam e tenham sonhos felizes; as remelas que todos temos, pela manhã, são os resquícios dessa areia mágica que abriu as portas do sonho.

É uma ideia bela. Demasiado bela para não ser aproveitada, e realmente foi. Tanto em livros, como em bandas desenhadas, sempre existiram histórias do Sandman. Na Detective Comics, o Sandman era um herói de ideais ingénuos próprios da década de 40, que combatia o crime com uma arma de gás que adormecia os malfeitores; em 1970 o personagem foi alvo de uma revitalização, mais adequada aos tempos de então, e passou a ser um super herói de fato justo amarelo e vermelho, que protegia as crianças quando estas se aventuravam nos reinos do pesadelo.


Em 1988, um jovem autor de nome Neil Gaiman, que até à data havia apenas escrito duas novelas gráficas (nome popularmente dado a histórias independentes em banda desenhada que se afastam dos cânones normais de publicação, e que primam por uma maior qualidade gráfica), propôs à DC Comics a publicação de uma revista mensal, com o Sandman como personagem principal. A ideia foi aceite, mas ninguém sabia bem o que iria sair dali.

O “Sandman” teve uma publicação mensal ininterrupta de 75 revistas, desde 1988 a 1996, e pelo caminho tornou-se um verdadeiro fenómeno de massas, tendo revolucionado por completo o género. Até à data, as revistas de banda desenhada eram consideradas como entretenimento superficial para crianças e adolescentes, estreladas por heróis de corpo quadrado em fatos de spandex, e heroínas de seios voluptuosos e curvas perfeitas, em trajes minúsculos.

“ROSE: Say, whoever you are. Do you know what Freud said about dreams of flying? It means you're really dreaming about having sex.

MORPHEUS: Indeed? Tell me, then, what does it mean when you dream about having sex?”

Neil Gaiman, Sandman, Vol. II The Dolls House - Into The Night

O “Sandman” destacou-se justamente por ser uma das poucas revistas que existia totalmente fora desse universo, e apresentou uma série de histórias destinadas a um público maduro, abordando assuntos adultos e controversos, prenhe de uma qualidade de escrita considerada literária, e assumindo com justiça um lugar de destaque no pódio das grandes obras literárias do século XX. Os prémios que recebeu durante a sua publicação foram demasiados para serem enumerados, mas há pelo menos um que posso indicar, e que demonstra cabalmente a qualidade da obra: A história “A Midsummer’s Night Dream”, onde William Shakespeare apresenta a peça com o mesmo nome, pela primeira vez, ao Sandman e a uma delegação das Fadas, ganhou o prémio World Fantasy Award, em 1991, para Best Short Fiction, e o ultraje foi tamanho que no ano seguinte as regras do concurso foram alteradas, para que nunca mais uma história em banda desenhada pudesse concorrer contra histórias em prosa.

O personagem principal é o Sandman, ou Dream, senhor do reino dos sonhos (Lord of The Dreaming), que não mais é do que uma personificação antropomórfica imortal dos sonhos. A sua família é composta de mais seis personagens, chamados “The Endless”, e cada um deles assume também uma representação de algum aspecto da realidade (Delirium, Despair, Destruction, Desire, Destiny e Death), e é conhecido por vários nomes (Morpheus, Oneiros, Lord Shaper, Dream).

“Never a possession, always the possessor, with skin as pale as smoke, and eyes tawny and sharp as yellow wine: Desire is everything you have ever wanted. Whoever you are. Whatever you are.

Everything.”


Neil Gaiman, Sandman, Vol. IV Season of Mists – Episode 0

Não é uma personagem simpática, a princípio, este Sandman. No primeiro volume de histórias (Preludes & Nocturnes), é aprisionado, e forçado a passar 70 anos dentro de uma bolha de vidro, enquanto no mundo grassa a “Doença do Sono”. Quando se liberta, há algo que mudou em si, apesar dele não se aperceber, e é nas histórias seguintes que vamos ver o que o Sandman era antes do seu cativeiro, e no que se tornou depois. Eventualmente, essa série de mudanças levará a um fim trágico, mas isso é outra história.

Entrei em contacto com estas revistas no longínquo ano de 1989, era eu um adolescente borbulhento, no Brasil. Foi o meu grande amigo, Renato, que não vejo desde 1991 (mas que ainda é um grande amigo), que me emprestou os primeiros volumes, que eu devorei como uma debulhadora a funcionar a todo o vapor, em seara de trigo. “Isto é diferente”, lembro-me de dizer a mim próprio. Infelizmente (e felizmente, por uma série de outros motivos) depois voltei para Portugal, e nunca mais tive acesso às suas histórias, até ao belo ano de 1998, numa visita à Livraria Inglesa, no Porto. Comprei os 12 volumes originais, que reuniam a compilação de todas as revistas, e fiquei fã. Quando comecei a explorar estes mundos virtuais, de salas de chat e conversas com desconhecidos, foi o nick que adoptei, porque me identifico com a ideia geral por detrás das histórias, com a poesia submersa nas palavras de Neil Gaiman, e porque sou um sonhador inconformado, desperto ocasionalmente.

“DESTRUCTION: I like the stars. It's the illusion of permanence, I think. I mean, they're always flaring up and caving in and going out. But from here, I can pretend. I can pretend that things last. I can pretend that lives last longer than moments.

Gods come, and gods go. Mortals flicker and flash and fade. Worlds don't last; and stars and galaxies are transient, fleeting things that twinkle like fireflies and vanish into cold and dust.

But I can pretend.”


Neil Gaiman, Sandman, Vol. VII Brief Lives – Chapter 8

Foram as histórias do Sandman que despertaram em mim o desejo de começar a escrever as minhas próprias histórias: como pequenas teclas que emitem sonoras vibrações, houve partes de mim que vibraram com insistência, enquanto lia (e leio), e me fizeram pensar “Isto é muito bom, e eu quero tentar fazer algo assim. Mesmo que não consiga, como provavelmente não conseguirei. Mas quero tentar”. O “Sandman” nunca foi algo destinado a ter o sucesso que teve, e deveria realmente ter sido uma pequena série de histórias obscuras, destinadas a afundarem-se no nevoento esquecimento.

Neil Gaiman apenas sabia que era aquilo que queria escrever, independentemente de quaisquer estudos de mercado ou estratégias de marketing ou literaturas destinadas a atingir a máxima rentabilidade financeira. Ele queria escrever aquelas histórias, de um mundo trágico rodeado de personagens de contos de fada, mitológicos, fantasiosos, que reflectia exactamente o mundo interior em que todos vivemos, fora das quatro paredes que construímos para nos protegermos. E escreveu.

Consigo identificar-me plenamente com esse sentimento: não estou aqui para tentar ser rico a escrever spin offs de romances históricos de fundo religioso, ou amontoados lamechas de palavras comercialmente românticas que apelam ao piegas que há em todos nós. Posso escrever isso se quiser, e talvez o faça, eventualmente, mas agora não; sei que tenho uma escrita por vezes maçuda, e que talvez a maioria das minhas histórias não despertem grande apelo comercial, posto que não têm muita acção, nem bombas e murros portentosos; são mais revoluções interiores. Mas é isso que quero fazer, e realmente é pelo prazer que o faço, mesmo sendo um tanto ou quanto realista, e sonhando inocentemente um dia conseguir tornar-me algo parecido com um escritor a tempo inteiro. Na verdade, nem é pelo dinheiro, é só porque detesto acordar cedo. :) E isso, camaradas, é sermos nós mesmos.

“AMELIA: A woman shouldn't have to sleep her life away. Women aren't about dreaming. We're about the real world. Even your grandma woke before she died. Women are about waking, Rose.

As mothers we wake them from nothingness to existence. As maidens we wake them to the joys and miseries of adulthood, wake them to the worlds of lust and responsibility. And when their time's up, it's always us has to wash them for the last time, and we lay them out for the wake.”


Neil Gaiman, Sandman, Vol. IX The Kindly Ones – Six

Curiosamente, também foi o “Sandman” o responsável pela entrada maciça de leitoras femininas no universo da banda desenhada, mundo até há algum tempo exclusivo dos homens; é a força com que os personagens são retratados, a realidade com que vemos as mulheres daquele mundo, no que dizem, pensam, e fazem. O modo como interagem entre si, ainda que nas situações potencialmente absurdas em que por vezes se vêem enredados (as).

As histórias permitem que nos percamos e passemos alguns minutos bem passados, mas também servem como fonte de reflexão, e podem inclusive engrenar novas perspectivas de ver o mundo. Ou, pelo menos, uma sonhadora e poética maneira realista de ver o mundo em que vivemos.

“MORPHEUS: It has always been the prerogative of children and half-wits to point out that the emperor has no clothes. But the half-wit remains a half-wit, and the emperor remains an emperor.”

Neil Gaiman, Sandman, Vol. IX The Kindly Ones – Eight

Foi com alguma perplexidade que alguém um dia observou que os leitores do “Sandman” transcendem um pouco o que é normal no meio, na medida em que desenvolvem uma vontade latente de ser algo mais do que um mero espectador: querem também ser os encenadores dos seus próprios sonhos (na arte de contar histórias). Não fico surpreendido, pois sou um perfeito exemplo disso, e considerando que foi deste desejo que nasceu este blog, nada mais apropriado do que beber directamente da fonte, e criar algo que reflicta um pouco esse espírito: sonhar e contar, contar e sonhar. Sonhar, e fazer sonhar.

“CHORONZON: I am a dire world, prey-stalking, lethal prowler.

MORPHEUS: I am a hunter, horse-mounted, wolf-stabbing.

CHORONZON: I am a horsefly, horse-stinging, hunter-throwing.

MORPHEUS: I am a spider, fly-consuming, eight legged.

CHORONZON: I am a snake, spider-devouring, posion-toothed.

MORPHEUS: I am an ox, snake-crushing, heavy footed.

CHORONZON: I am an anthrax, butcher, bacterium, warm-life destroying.

MORPHEUS: I am a world, space-floating, life nurturing.

CHORONZON: I am a nova, all-exploding... planet-cremating.

MORPHEUS: I am the Universe -- all things encompassing, all life embracing.

CHORONZON: I am Anti-Life, the Beast of Judgement. I am the dark at the end of everything. The end of universes, gods, worlds... of everything. Sss. And what will you be then, Dreamlord?

MORPHEUS: I am hope.”


Neil Gaiman, Sandman, Vol. I Preludes & Nocturnes – A Hope In Hell

Boa noite, e bons sonhos.

5 comentários:

Lisa disse...

Aqui há uns anos um amigo emprestou-me o primeiro volume do Sandman. Li-o e logo encomendei os restantes pela amazon.
Gaiman é fantástico, e conquistou-me logo. Já li um dos seus romances (American Gods, adorei) e tenho lá mais em lista de espera. Em lista de espera estão também o Watchmen, o Preacher...

Mais uma viciada em BD, por estes lados :D

Belíssimo post, parabéns :)

Sandman disse...

O "Bons Augúrios" (Good Omens), de Gaiman e Pratchett já está publicado em Portugal, e podes encontrá-lo baratinho em qualquer Fnac. O "Neverwhere" também.

o "Watchmen" de Alan Moore, merece um post de direito próprio, e vai tê-lo, em breve. É a obra que mais me fascina (sabes concerteza que Alan Moore foi o responsável pela entrada de Gaiman na BD), e leio-a de 6 em 6 meses, pelo menos.

Recomendo que leias primeiro o "V for Vendetta", porque é uma obra anterior ao "Watchmen". Não estão relacionadas entre si, mas é possível ver uma certa continuidade temática entre elas, e constatar a evolução da escrita. O autor refere que "V for Vendetta" é uma obra de paixão, e "Watchmen" será uma obra mais cerebral. Ambas excelentes, claro.

O "Preacher"... bem... o que posso dizer? Lê, e compra fita-cola, para segurar-te o queixo. É violento, profano, grotesco, absurdo, delirante, louco, engraçado, sério, apaixonado, histórico, romântico, nojento, frenético, ponderado, moralista, anarquista... e não vais conseguir parar de ler.

:-)

Lisa disse...

O V já li, é uma maravilha. Também adorei o From Hell (levei imenso tempo neste, que li o pósfácio ao mesmo tempo).
O Good Omens comecei hoje. Tenho a edição original, que prefiro sempre: mais barato e em formato de livro de bolso; levo-o na mala e dá para ir lendo enquanto espero pelos transportes.
O neverwhere também já comprei. De vez em quando faço uma incursão à parte de livraria internacional da fnac e arrebanho o que lá houver. É um vício -bendito vício - a leitura :)

nunocavaco disse...

Não conheço, mas fiquei curioso.

Sandman disse...

Nuno, se quiseres saber mais sobre esta fantástica obra, tens imenso material de pesquisa na net. Ou então, faz como os sensatos, e compra o volume I Preludes & Nocturnes, e começa daí. :)

Se quiseres ser cauteloso, continua a passar por aqui. Ainda tenho mais dois posts reservados para este tema: Toque, e Biblioteca.

:)